A organização editorial científica como campo social

Kamille Ramos Torres¹

A pesquisa que realizei tem sua estrutura dividida em 4 (quatro) capítulos, além da introdução e das considerações finais. Teve-se como objetivo  compreender como as relações de poder influenciam a prática editorial em revistas científicas da área de Administração. Para responder esse objetivo, buscou-se compreender a gênese e estrutura do campo editorial da comunicação científica em Administração com regras, relações de força e tipos de capitais; investigar as relações dos editores com os demais agentes e instituições que compõem o campo e; entender com a estrutura social do campo é interiorizada e exteriorizada possibilitando a formação de disposições duráveis (habitus).

No primeiro capítulo abordei a teoria que fundamenta toda a minha dissertação. Nesse caso foi utilizado a Teoria do Campo Social de Bourdieu, juntamente com os conceitos de habitus, prática e capital. De acordo com Bourdieu (1983a), o campo é onde se manifestam as relações de poder por causa da distribuição desigual de capital. O capital seria o motivo de disputa no campo e sua posse, geralmente, designa o poder do agente (BOURDIEU, 1996). O habitus, explica Bourdieu (2007), é a interiorização e exteriorização das estruturas sociais e tem uma relação dialética entre a trajetória de socialização do agente e a estrutura do campo, sendo que a prática resulta dessa relação.

A prática é o intermédio entre as disposições subjetivas (habitus) e as estruturas objetivas (campo) (BOURDIEU, 2007). Bourdieu (1983a) ao definir o habitus como “estrutura estruturada e estruturante”, permite a possibilidade de se compreender que a prática é formada pelas estruturas objetivas e que o agente as interioriza durante sua trajetória de socialização, isto é, o habitus é estruturado. Mas, ele é, também, estruturante quando as disposições subjetivas são exteriorizadas pelos agentes por meio de práticas e que podem constituir a estrutura do campo.

Em seguida estabeleci que o campo editorial científico tinha uma interdepedência com  o campo científico, que é o campo constituído por agentes e instituições responsáveis pela produção, difusão e reprodução da ciência (BOURDIEU, 2004).

No campo científico, Bourdieu (1983b; 2004) atesta que, assim como qualquer outro campo, existem lutas entre os agentes e instituições ali inseridos. Eles lutam pela distinção, pela ocupação de posições dominantes no campo. O interesse dos agentes e instituições é possuir o capital específico do campo, pois é ele que é o responsável pela posse de poder ao agente. No campo científico os capitais são o da competência científica e o da autoridade científica, e nos dois casos eles são traduzidos como uma forma de capital simbólico, já que se refere ao reconhecimento conquistado pelos agentes, seja pela publicação em periódicos de referência na área ou pela participação em instâncias burocráticas, coordenando ou dirigindo tais instâncias (BOURDIEU, 1983b; 2004).

O surgimento dos periódicos científicos na Europa se deu pela pretensão dos editores em obter lucro (MEADOWS, 1999). Mas, o surgimento do periódico também se vinculava com a ampliação da audiência dos agentes interessados no capital cultural que era mobilizado (ROSSONI, GUARIDO FILHO, 2012).

Expliquei, na sequência, a gênese da comunicação científica e como ela é cercada pelas relações de poder. Mesmo que as editoras comerciais tenham se apropriado da comunicação científica, ainda em 1665 (LARIVIÈRE, HAUSTEIN, MONGEON, 2015), ano do surgimento dos primeiros periódicos científicos na Europa (MEADOWS, 1999), percebe-se que o campo (principalmente o brasileiro) ainda luta pela não inserção dessas práticas, apontando para a preferência por práticas que não refletem a utilização de capital econômico (Open Access, por exemplo).

Os periódicos científicos realizam importantes funções no campo, como o de conceder reconhecimento aos pesquisadores, legitimar disciplinas e áreas de pesquisa. No Brasil os periódicos surgiram dois séculos depois de sua consolidação na Europa, juntamente com as instituições de ensino (FGV, USP, entre outros) e com as agências de avaliação e fomento (Capes e CNPq).

Em seguida, ainda nesse capítulo, descrevi sobre os agentes e as funções e regras objetivas do campo. Os editores são os responsáveis por conceder o status aos autores, por meio da aprovação de artigos (PATRUS, DANTAS, SHIGAKI, 2016). Os avaliadores, no entanto, não possuem nenhum tipo de crédito pelo seu trabalho. Além desses agentes, descrevi sobre os editores associados, convidados, conselho editorial, corpo científico, autores e leitores, sendo que em todo texto é notório as relações de poder instituídas.

No segundo capítulo apresentei os caminhos metodológicos percorridos.  O estudo realizado teve como abordagem a pesquisa qualitativa e quantitativa, enfoque exploratório descritivo e temporalidade seccional e transversal. A coleta de dados se deu através de pesquisa documental e entrevistas. Sendo que a pesquisa documental foi realizada em sites, artigos e editoriais que tratassem aspectos relacionados a normatização do campo por meio das agências, indexadores e indicadores cientométricos, além de coleta nas páginas das 79 (setenta e nove) revistas estudadas e na página do Spell. Já, a entrevista foi realizada com 11 (onze) editores-chefes das revistas pré-selecionadas. Para a análise dos dados foram utilizados a Estatística Descritiva, Análise de Correspondência Múltipla e Análise Temática.

No terceiro capítulo, apresentei a constituição do campo editorial científico de Administração brasileiro. Por meio da Estatística Descritiva foi possível observar as características, que muitas vezes refletiam a posse de capital, das 79 (setenta e nove) revistas estudadas. Em seguida foi possível perceber os capitais em disputa no campo, que foram: capital simbólico acumulado (criação do periódicos científico, vínculo e nota do Programa de Pós- Graduação (PPG)), capital específico, que também é uma forma de capital simbólico (Qualis, fator de impacto, taxa de autocitação, indexação) e capital econômico (bolsa  Capes/CNPq). Na análise das entrevistas, e ainda nesse capítulo, percebeu-se as práticas dos editores em relação a Política Qualis Capes (avaliação, indexadores e indicadores cientométricos, editoras comerciais e internacionalização de periódicos), e consequente, poder dessas instância em relação aos editores.

O quarto capítulo apresenta os editores como o agente que está no centro de todas as pressões do campo. Assim, abordei o interesse do docente e o campo científico, discutindo a inserção do docente na editoração, e a relação do editor com o jogo (seus interesses, o trabalho desempenhado pelo editor, a relação do editor com a instituição mantenedora, a relação do editor com a equipe editorial, a relação do editor com os avaliadores e autores, as relações de interesse entre o editor e o campo, e a relação do editor com os demais editores da área de Administração).

Os resultados apontam que as relações de poder exercem influência na prática editorial na medida em que o interesse do editor está em possuir o capital específico do campo ou manter o valor dos capitais atribuídos a ele no campo científico. Foi possível constatar que existe influência através da submissão aos indexadores e da obsessão no fator de impacto, da falta de apoio institucional, da falta de colaboração dos agentes, do interesse em preservar o capital social e da competição.

Tais relações de poder resultam em uma busca exacerbada por seguir critérios das bases de dados, na manipulação dos índices de impacto por meio da autocitação, no editor atuando em várias etapas do processo editorial, no editor avaliando artigos ou adaptando o processo de avaliação, no privilégio dado a pesquisadores da rede de relações e a pesquisadores que tenham reconhecimento do campo e na influência política de editores que fazem parte de instâncias burocráticas com o objetivo de subverter a ordem científica.

 O campo também manifesta interesse em relação ao editor e pode corroborar para a mudança da prática editorial, isso ocorre, ainda que raro, por meio de ofertas de dinheiro, de solicitação de aprovação de artigos e da utilização de vínculos para tentar manipular o editor.

Referências

BOURDIEU, Pierre. A Distinção: crítica social do julgamento. Tradução: Daniela Kern e Guilherme J. F. Teixeira. Porto Alegre, RS: Zouk, 2007.

BOURDIEU, Pierre. Esboço de uma teoria da prática. In: ORTIZ, Renato (org.). Pierre Bourdieu: sociologia. São Paulo: Ática, 1983a.

BOURDIEU, Pierre. O campo científico. In: ORTIZ, Renato (org.). Pierre Bourdieu: sociologia. São Paulo: Ática, 1983b.

BOURDIEU, Pierre. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo cientifico. Tradução: Denice Barbara Catani. São Paulo: Editora UNESP, 2004.

BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: Sobre a teoria da ação. Tradução: Mariza Corrêa. São Paulo: Papirus, 1996.

LARIVIÈRE, Vincent; HAUSTEIN, Stefanie; MONGEON, Philippe. The Oligopoly of Academic Publishers in the Digital Era. PLoS ONE, v.10, n.6, 2015.

MEADOWS, Arthur Jack. A comunicação científica. Tradução: Antonio Agenor Briquet de Lemos. Brasília: Briquet de Lemos/Livros, 1999.

PATRUS, Roberto; DANTAS, Douglas Cabral; SHIGAKI, Helena Belitani. Pesquisar é preciso. Publicar não é preciso: história e controvérsias sobre a avaliação por pares. Avaliação, Campinas, v. 21, n.3, 2016.

ROSSONI, Luciano; GUARIDO FILHO, Edson Ronaldo. Onipresença nos Conselhos Editoriais: Prestígio e Cerimonialismo na Atividade Científica. REDES – Revista hispana para el analisis de redes sociales, v.22, n. 8, 2012.

¹ Mestre em Administração pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). Bolsista pela Capes.

A resenha apresentada se refere a dissertação “Para além da editoração: as relações de poder e a prática editorial em revistas científicas na área de Administração” de autoria de Kamille Ramos Torres sob orientação do Prof. Dr. Francis  Kanashiro Meneghetti. A defesa ocorreu em 20 de fevereiro de 2020, com banca composta pelo Dr. Leonardo Tonon e pelo Dr. Luciano Rossoni.

Como citar:
TORRES, Kamille Ramos. A organização editorial científica como campo social. In: Nuevo Blog, 20 mar. 2020. Disponível em: https://nuevoblog.com/2020/03/20/a-organizacao-editorial-cientifica-como-campo-social/. Acesso em: ??.

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