
Rafaela Mota Ardigó¹
Sempre me questionei sobre a fé. Intuitivamente, desde muito jovem, pressenti que ela assume diferentes roupagens. Para muitos se dá em templos e palavras sacras. Para tantos, é depositada na ciência e na esperança do legado do conhecimento erudito. Para outros, ainda, assume a forma do dinheiro e das benesses materiais que lhe são peculiares. Para alguns, como é o meu caso, a fé se desnuda e se insinua na literatura. Em comum, todos nós buscamos alguma forma de salvação.
Na literatura ela acontece quando nos permitimos adentrar em outras vidas, outras histórias, outras realidades através do contato íntimo com os personagens. Eles caminham conosco nos rios caudalosos e agitados da imaginação, ora como anjos, ora como diabos, nos desvelam, sem querer, o que há de mais profano e profundo em nossa solidão. Nela, repousa toda nossa humanidade.
Nos grandes sertões em que residem todas as almas sobre a terra, a literatura nos presenteia com suas veredas de compreensão sobre o próximo. A empatia, esta capacidade de compreender emocionalmente o outro, tão necessária quanto rarefeita em nossos tempos, ascende de forma natural e, por vezes, nos confunde. Isto porque, ao nos depararmos com nossa humanidade nos vemos de frente com o que há de melhor e de pior em nós mesmos.
Nossos preconceitos velados de repente se deparam com aquelas mortes em vida, tão severinas. Com o triste fim daquelas Helenas de Tróia ou daquelas Julias e Annas, estas tão entediadas em suas vidas aparentemente perfeitas. A literatura nos transporta e nos coloca naqueles quartos fétidos e escuros onde despejamos, conscientemente ou não, os espíritos que nos negamos a ver ou conviver. Com o tempo e com o acumulo de obras, temos um verdadeiro diário de atrocidades interiores. Porém, nem tudo são agruras. A literatura também tem a capacidade de nos devolver o olhar da criança sobre o sofrimento, sobre a família e sobre o amor, transcendendo até o tempo, graças a Deus.
Considero a minha fé uma experiência quase religiosa, apesar de pouco sê-la no sentido semântico do termo. Ainda assim, ela me eleva. Ilumina minha consciência e responde as minhas dúvidas mais profundas. Ela me ajuda a ver e ouvir o mundo de forma mais empática, me ajudando no treino constante em que se colocam aqueles que almejam tornar-se mais conscientes e ativos de seu dever social no mundo. Os religiosos chamam a isso de caridade. Acredito que é neste dever árduo que reside nossa solidão como humanidade e, é aí, que se desvela o poder da literatura sobre as almas.
¹Doutoranda em Tecnologia e Sociedade pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR).
Como citar:
ARDIGÓ, Rafaela Mota. A religiosidade que reside na literatura. Nuevo Blog, 23 mar. 2020. Disponível em: https://nuevoblog.com/2020/03/27/a-religiosidade-que-reside-na-literatura/. Acesso em: ??
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