
José Henrique de Faria¹
O coronavírus tem como característica, entre outras, a velocidade com que se propaga e a taxa de letalidade. No caso dos grupos de alto risco ambos os fatores são exacerbados. A experiência com o enfrentamento desse vírus em outros países indica que o isolamento social é a forma imediata mais adequada para combater a pandemia contendo sua rápida expansão. Isso significa a suspensão de todas as atividades em que haja aglomeração ou circulação de pessoas: escolas e instituições superiores de ensino, comércio, bancos, fábricas, órgãos de governos, serviços de transporte, clubes, associações e outras organizações. Essa não é a primeira crise sanitária mundial provocada por um agente viral ou bacteriológico, e a questão fundamental é a mesma: o que deve permanecer em atividade? A resposta a essa questão está relacionada ao que deve ter primazia na sociedade. E o que tem a primazia?
O Governo Federal, especialmente através da manifestação do Presidente da República, considera a pandemia uma histeria alimentada pela mídia e pela oposição. O COVID-19 é uma gripezinha. Tudo deve funcionar normalmente, apenas isolando os idosos e vulneráveis. Enquanto os ex-atletas e os jovens são tidos como praticamente imunes, assim como os que comparecem a eventos místicos, os trabalhadores (especialmente os que se encontram na base da pirâmide da divisão do trabalho) são tidos como dispensáveis. Todos devem assumir o risco, pois afinal o Brasil não pode parar. O que são cinco a sete mil mortes! O número relativo de mortos não é significativo! Os idosos morrendo aliviam o custo social e previdenciário! Não tem qualquer importância dispensar vinte e dois mil empregados se o dinheiro vai continuar no bolso do dono!
Ora, qual Brasil não pode parar?
Na campanha presidencial de 1992, James Carville, à época assessor da campanha de Bill Clinton, disse: “é a economia, estúpido!”. Essa frase se tornou um slogan na campanha de Clinton e um mantra repetido em campanhas presidenciais em todo o mundo. O resultado da gestão governamental da economia está ligado aos interesses privados do capital e não às demandas e necessidades sociais. Esses resultados se viabilizam porque, em média, 70% dos membros do Congresso Nacional são reeleitos e dos 30% restantes uma parte considerável é ocupada por sucessores dos não eleitos ou não concorrentes. Essa é a chamada governabilidade que o governante mantém, amplia ou perde quando entra em confronto político com a base de apoio. Na base da estrutura política, como anunciou Carville, se encontra a economia.
O que esse cenário mostra com absoluta clareza é que a vida dos cidadãos em geral, as questões sociais urgentes, a saúde e as necessidades dos mais carentes ou marginalizados pela economia é apenas um detalhe. O governo do Estado Capitalista tem que intervir para que a economia não pare: “o Brasil não pode parar” diz a campanha do Governo Federal. As pessoas podem morrer por omissão do poder público, mas as empresas e os empreendimentos não podem deixar de acumular. A máxima liberal de que tudo se ajeita com a mão invisível continua a ser uma ideologia do paraíso dos ricos e dos proprietários dos meios de produção. Quando a economia se encontra em seu ciclo de expansão, a ideologia é “menos Estado”, “Estado mínimo” ou, a mais hipócrita, “Estado necessário”. Quando a economia se encontra em uma fase de crise de acumulação, no caso, agravada por uma crise sanitária, o discurso muda para “Estado líder”, “Estado coordenador”. Em última, quer dizer, em primeira instância, todo liberal ou neoliberal se transforma em keynesiano assim que a crise de acumulação se evidencia. A economia capitalista jamais dispensou o Estado Capitalista: o liberalismo nunca foi além de uma ideia.
A crise de acumulação, que já se tornara evidente no Brasil no final de 2016, foi agravada com a limitação (congelamento) dos Gastos do Governo em Custeio e Investimento e com as reformas trabalhista e previdenciária. O desemprego, mais o trabalho flexível e a terceirização, atingem 50% da chamada população economicamente ativa. O Consumo das Famílias e do Governo diminuíram por óbvio. A atividade econômica estagnou (o PIB cresceu apenas 1% e deve diminuir). O Governo deixou de investir no sistema de saúde pública, reduziu drasticamente os investimentos em educação e pesquisa (ciência) e em infraestrutura urbana e social. É nesse contexto histórico e social de uma economia em crise (tanto aqui como em outros países) e um Governo inepto que o coronavírus aparece: encontrou um terreno fértil para sua propagação.
O que já estava mal, piora. E piora ainda mais devido à incompetência e à irresponsabilidade do Governo Federal que, na tentativa de salvar o sistema de capital, aprofunda a estrutura política e social. A fórmula é óbvia: política econômica direcionada a uma fração do Capital -> (gera) crise de acumulação nos setores não beneficiados -> (que gera) política econômica para corrigir os efeitos da primeira política -> (que gera) aprofundamento da crise de acumulação -> (que gera) novas reformas e assim sucessivamente. A tarefa do Ministro da Economia tem sido propor políticas econômicas para consertar as consequências desastrosas de suas próprias políticas, as originais e as corretivas, em um interminável looping (pirueta). No meio desse processo funesto e lamentável, emerge uma pandemia, exigindo do Governo Federal uma política totalmente contrária à sua prática e competência.
A opção é clara: “é a economia, estúpido!”.
A linha demarcatória entre o desastre e o que é economicamente viável e necessário para a manutenção da economia burguesa está rompida pela improficiência e pela trágica ideologia astrológica. O limite (jurídico-formal, social e econômico) do exercício do poder foi ultrapassado quando a pandemia exigiu responsabilidade política. É evidente que não há mais garantias institucionais. Os Governadores e a base de apoio do Presidente se afastaram estrategicamente de seu discurso. A luta passa agora para o campo aberto, que deve estar além das paneladas. Se as classes ou grupos sociais relevantes, cujos limites políticos foram rompidos, tiverem consciência de que a linha demarcatória foi ultrapassada, haverá resistência popular. Se não, serão construídas, pela elite política, pelo parlamento e pelos representantes do Capital, novas demarcações, de forma que, no limite, possa ser contido ou mesmo aniquilado o terreno em que pode se desenvolver a luta de oposição e resistência.
O objetivo de todo projeto capitalista é garantir o processo de acumulação simples e, principalmente, ampliada do Capital. O coronavírus, como qualquer outro, não é, para tal sistema de reprodução sociometabólica, senão um obstáculo à acumulação. Questões sociais são secundárias para esse sistema. A diferença se encontra entre uma gestão do Estado Capitalista responsável (com um parlamento politicamente representativo das demandas sociais) e uma gestão incompetente, perversa e irresponsável (com um parlamento submisso e um poder judiciário ausente e conivente). O que não se pode fazer é acreditar que a situação vai melhorar assim que se trocar o seis pela meia dúzia. A sociedade precisa enfrentar mais do que o coronavírus.
¹Doutor em Administração pela Universidade de São Paulo- FEA/USP e Pós-Doutor em Labor Relations pelo Institute of Labor and Industrial Relations – ILIR – University of Michigan. Professor Titular Sênior da Universidade Federal do Paraná (UFPR) no Programa de Pós-Graduação em Administração (PPGADM) e Professor Visitante da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) no Programa de Pós-Graduação em Administração (PPGA).
Como citar:
FARIA, José Henrique de. É a economia!. Nuevo Blog. Disponível em: https://nuevoblogbr.wordpress.com/2020/03/31/e-a-economia/. Acesso em: ??
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