Uma quarentena que afeta

Allan Martins Mohr¹

Pensa num desastre global, tipo bomba de nitrogênio ou um ataque alienígena digno de filme de Hollywood. Nesse filme tudo começa bem, pacificamente bem e logo a coisa fica ruim, muito ruim e, quando se dão conta, os personagens estão construindo bankers para salvar a própria pele e o couro de seus familiares. É mais ou menos isso que estamos vivendo há quase um mês. E olha que é apenas o início do ano.

Estamos vivenciando o que chamam de isolamento social, ou distanciamento social horizontal, ou a boa e velha quarentena: um estado de reclusão forçada. A bem da verdade, numa quarentena “de verdade”, a ideia é que a pessoa, ou o animal, fique recluso visando impedir a contaminação de outros, ou seja, passada a fase de incubação da doença e finda a possibilidade de transmissão, o animal e o homem podem sair ao mundo novamente. Mas no nosso caso é um tanto pior. Estamos vivenciando uma pandemia, ou seja, mesmo não sabendo o que isso significa direito, quer dizer que a coisa está feia por demais e que devemos nos afastar do convívio social a fim de nos protegermos e proteger outros. Mas proteger do que? De sermos infectados e infestados, amaldiçoados, se quiserem, por um vírus: uma ameaça invisível a olho nu que pode estar em todo e qualquer lugar e que te pega de um jeito que só aqueles apaixonados fazem – pega e não larga! Bem, por conta disso tudo e mais um pouco, estamos – aqueles que podem – em isolamento e distanciamento social. E isso é um problema. Por quê? Porque nos afeta.

Gosto de uma definição que diz ser o afeto tudo e qualquer coisa que brota de dentro da gente e afeta nosso corpo. Claro que poderíamos diferenciar afeto, emoção, sentimento e outros, mas ficarei com essa ideia por ora. Afeto é o que nos afeta de dentro. E estar isolado socialmente nos afeta e gera inúmeros afetos. Mas queria falar de uma questão que, entendo, pode estar como base de muitos sentimentos de ansiedade e demais emoções vivenciadas nesse momento, a tal da despersonalização. Não achem que despersonalização é coisa de louco, ou se for, estamos todos muito próximos disso aí. Despersonalização é uma sensação, um afeto ou sentimento, se quiserem, de que eu não sou mais eu; em outras palavras, é a sensação de que aquilo que havia constituído como eu-mesmo enquanto identidade já não sustenta mais aquilo que acredito ser. E como se relaciona isso com a dita quarentena?

Já leram “História da loucura”, de Michel Foucault? Se não, temos aí uma indicação para a quarentena. No livro, o autor conta como a loucura precisou, ao longo das eras, ser excluída, trancafiada e isolada das vistas do social. O louco é aquele que precisava ser destituído de sua identidade social, comunitária – e cabe reassegurar que o ser social é uma boa parte da identidade humana – para que os comuns da sociedade pudessem viver sem olhar para a escória do mundo. Em épocas de quarentena, nós somos a escória do mundo. Estar isolado, confinado, quarentenado (isso existe?), nos coloca louco, ou nos deixa loucos justamente porque perdemos ou diminuímos consideravelmente um aspecto importantíssimo de nossa constituição identitária: o vínculo social. Somos como o louco, só que no espelho. Ao invés de sermos isolados porque éramos loucos, estamos ficando loucos por termos que estar isolados – para fugir de um inimigo invisível que pode ter entrado em casa na sola do meu sapato, na gola da camisa, na sacola do mercado ou no relógio que não higienizei. E aí, a ansiedade, parece-me, pode ter certa relação com esse medo de perder a identidade. A ansiedade é como um alerta: é seu corpo, afetado, dizendo que algo não vai bem, algo está se perdendo…escutemos isso.

O que fazer então? Sei lá, estou tão ansioso quanto vocês! Mas tento manter o pouco de sanidade que adquiri ao longo dos anos tentando, o melhor possível, manter meus vínculos sociais e meus lugares sociais, mesmo que virtualmente. Por isso talvez aquela hashtag sobre ficar isolado mas nunca sozinho tenha feito tanto efeito, tenha nos afetado tanto. O pior do isolamento social, entendo, é o risco de nos perdermos. E isso é, de fato, extremamente dolorido.

¹Psicólogo e mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Paraná. Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Atualmente é psicólogo da Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Câmpus Curitiba, professor do curso de Psicologia da FAE Centro Universitário e pesquisador do “Catrina: grupo de estudos e pesquisa em morte, vida e ética”. Autor do livro infantil “Uma flor para Tatau” (Editora Inverso, 2019).

Como citar:
MOHR, Allan Martins. Uma quarentena que afeta. Nuevo Blog. Disponível em: https://nuevoblogbr.wordpress.com/2020/04/02/uma-quarentena-que-afeta/ . Acesso em: ??

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