
Rafaela Mota Ardigó¹
Eric Arthur Blair (1903-1950), mais conhecido pelo pseudônimo de George Orwell, nasceu na Índia enquanto seu pai, membro da classe média, trabalhava na administração colonial inglesa. Por intermédio de uma bolsa realizou seus estudos secundários em Eton, uma escola da elite inglesa especialmente famosa, onde estudaram boa parte das pessoas que controlavam a Inglaterra na época. Após a formatura alistou-se na Polícia Imperial Britânica, onde serviu por cinco anos antes de abandoná-la alegando ter detestado a experiência do imperialismo.
Escritor e jornalista, como se autodenominava Orwell, viveu em um período histórico marcado por guerras e pela dualidade entre as ideologias comunista e capitalista. Até firmar-se como escritor passou fome e conviveu com as classes sociais mais miseráveis do país. Segundo palavras do autor no prefácio à edição ucraniana do livro, publicada em 1947:
“Tornei-me propriamente socialista mais por desgosto com a maneira como os setores mais pobres dos trabalhadores industriais eram oprimidos e negligenciados do que devido a qualquer admiração teórica por uma sociedade planificada”.
Após casar-se, em comum acordo com sua esposa, a família foi servir na Guerra Civil Espanhola na Frente Popular que concentrava as forças de esquerda. Segundo Orwell, o que os estrangeiros desconheciam à época eram as disputas internas dentro do Partido Comunista Espanhol. Tendo sido alocado na milícia POUM, ala mais ideológica do partido e associada a Trotsky, a família se viu duramente perseguida, tendo presenciado o fuzilamento e a prisão de diversos amigos pelo próprio partido comunista, que os acusava de conspiração com os fascistas. Ao retornar a Inglaterra, Orwell descreve sua surpresa em observar que mesmo as pessoas mais sensatas e bem informadas do país acreditavam piamente na versão perpetrada pelo comunismo lenista. Percebeu, então, como era fácil para a propaganda totalitária controlar a opinião das pessoas em regimes democráticos.
Esta experiência foi a principal inspiração de Orwell para escrever “A revolução dos bichos”, onde o autor objetivava alertar, de forma facilmente entendível a todos os públicos, os perigos do totalitarismo. O enredo conta a história dos animais que viviam na Granja do Solar, propriedade do Sr. Jones e que, após um sonho do porco Major, muito bem quisto pelos animais, começam a se organizar para a revolução que garantirá a liberdade e a igualdade para todos os animais frente às injustiças lhes impostas pelos humanos.
Os porcos representam a elite intelectual dos animais e conseguem forjar uma aliança com os demais. A revolução tem dois líderes, o porco Bola de Neve e o porco Napoleão. O primeiro, com viés mais ideológico e caráter mais firme se apoia nas bases das ideias originais de Major para construir seu modelo coletivista de vida após a revolução. Napoleão, por outro lado, não tem planos tão concretos e discorda veementemente de Bola de Neve, ainda que não sugira nenhum outro tipo de solução. Os cavalos representam o proletariado, as ovelhas, as vacas e as galinhas a classe média, enquanto Moisés, o corvo pregador e, Mimosa, a égua com privilégios, permanecem indiferentes, assim como o Burro, que não acreditava que qualquer mudança proposta pudesse, verdadeiramente, lhes melhorar a vida.
Com o transcorrer da revolução as dissidências entre Bola de Neve e Napoleão são cada vez maiores, culminando com a expulsão de Bola de Neve da Fazenda pelos jovens cães treinados desde filhotes por Napoleão. A partir daí começa a ser construída uma sociedade em que os porcos dominantes detêm cada vez mais poder e privilégios.
Entre suas ações para instrumentalizar esta nova sociedade estão o controle da educação, o revisionismo histórico da revolução, a alteração frequente das leis instituídas nos primeiros dias, sempre com o intuito de privilegiar as mudanças consideradas necessárias aos interesses dos porcos no poder, a propaganda política, a destruição dos símbolos da revolução e a violência desmedida a qualquer animal que se desviasse minimamente da ortodoxia que se objetivava estabelecer.
Orientados pela construção de moinhos de vento que, em teoria, melhoraria a vida dos animais a partir das benesses do desenvolvimento tecnológico, os animais se entregam a servidão voluntariamente. Em seu ápice, a revolução é apresentada completamente desfigurada de seus princípios iniciais, com os porcos estabelecendo alianças com os humanos e, tendo sido uma vez oprimidos, tornando-se os opressores de qualquer ato que representasse a dissidência da ortodoxia dominante.
Em uma breve contextualização histórica, o porco Major representa Karl Marx e a ideologia comunista. Bola de Neve representa Trotsky, figura central nos primeiros tempos da União Soviética, posteriormente expulso, exilado e assassinado por Stálin, seu maior rival político no Partido Comunista. Obviamente, Napoleão é Stálin que, inicialmente, argumentava governar por um sistema de pluralidade, porém com o decorrer de seu governo se demonstrou um ditador de fato, tendo contribuído, através de sua política de industrialização e coletivização pela grande fome na década de 1920, além de ter se demonstrado uma liderança sanguinária frente a qualquer ato que considerasse dissidência.
A reconciliação entre humanos e animais, no final do enredo, pode ser interpretada em um primeiro momento como a equalização moral entre comunistas e capitalistas no que se relaciona a exploração como método. Entretanto, como confirmado pelo próprio Orwell, o objetivo era satirizar o “Encontro de Teerã”, evento ocorrido no pós guerra no qual se reuniram a URSS e líderes ocidentais, em tom de confraternização, com o objetivo de construir uma sociedade harmoniosa entre os dois sistemas. A trajetória histórica e o advento da Guerra Fria demonstra que Orwell estava correto ao não acreditar que as potências que emergiam conseguiriam cumprir esta verdadeira utopia.
Passadas várias décadas de sua publicação, o livro ainda se demonstra atual e relevante para as sociedades modernas. O legado mais importante dessa é obra é a demonstração nua e crua de como se institui um regime totalitário e, no processo, como é fácil obter o apoio pela população, inclusive a intelectualizada, através da propaganda política que, inclusive, se torna instrumento essencial para a exploração e a aceitação da servidão. A perspicácia de Orwell ao tecer sua critica perpassa qualquer viés ideológico temporal que poderia ter lhe sido atribuído. Agendas políticas parecem não se diferenciar em seus métodos totalitários, assim nos demonstra a roda da história.
¹Doutoranda em Tecnologia e Sociedade pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR).
Como citar:
ARDIGÓ, Rafaela Mota.. Resenha: A Revolução dos Bichos, de George Orwell. Nuevo Blog, 2020. Disponível em: https://nuevoblogbr.wordpress.com/2020/04/06/resenha-a-revolucao-dos-bichos-de-george-orwell/. Acesso em: ??
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