Os hambúrgueres e os mortos

Igor Assoni Monteiro da Silva¹

Todos conhecem o enredo daquele famoso desenho animado, produto da indústria cultural norte-americana, cujo personagem principal é uma esponja-do-mar amarela, alegremente loquaz, vestida em calças quadradas e que acorda todos os dias com uma disposição incrível para fazer hambúrgueres na lanchonete de um caranguejo ávido pelas verdes notas de dinheiro, para as quais faz até amorosas poesias, enquanto seus olhos refletem cifras cintilantes. Em nome do engordamento de seu saco de dinheiro, este empresário dos hambúrgueres de siri não poupa esforços: economiza cada centavo, planeja formas de vender mais sanduíches, esconde habilmente a receita secreta de sua mercadoria e, principalmente, faz o uso mais racional da empolgação e do amor pelo trabalho de seu funcionário mais dedicado, a esponja. Como nenhuma adversidade parece perturbar o sentimento de missão e entrega desse funcionário, as relações entre a esponja e o caranguejo parecem as mais harmônicas, nas quais prevalece o reconhecimento de um interesse comum: manter o sistema da lanchonete funcionando.

Esse desenho poderia ser o microcosmo alegórico perfeito da nossa economia real. Por quê? Nos últimos dias, quando a sociedade brasileira se deu conta da realidade e da letalidade do COVID-19, muitas vozes se viram obrigadas a expressar sua perplexidade e apontar caminhos contra a crise econômica aparentemente gerada pela pandemia. Ironicamente, uma dessas vozes foi justamente a de um empresário dos hambúrgueres, Junior Durski, proprietário da rede de restaurantes Madero. Nosso empresário da vida real afirmou, em linhas gerais, ser contra a paralisação de atividades econômicas por causa da possível morte de umas 5 ou 7 mil pessoas pelo novo Coronavírus. Entre outras coisas, reconheceu que um alto número de pessoas morrem anualmente por inanição, tuberculose, assassinato, etc. Apenas números que fazem parte do cotidiano de nossa sociedade. Disse também estar preocupado com pequenos comerciantes e tentou nos convencer de que deveríamos, agora, tomar decisões racionais ao invés de deixar que todas as medidas sejam orientadas por infectologistas (CORONAVÍRUS, 23 de mar. 2020). 

Que racionalidade é essa a que o caridoso empresário nos exorta? Sua fala foi tomada com perplexidade, como se fosse a expressão de um cinismo malévolo, mas será que se trata disso, de um egoísmo imoral do indivíduo singular, Junior Durski? É óbvio que não; trata-se apenas do reflexo imediato da racionalidade do lucro. O realismo cínico desse senhor é legítimo, se considerarmos sua fala como expressão de seus interesses de classe. Em outras palavras, sua fala, assim como a de outras figuras bem mais repulsivas da burguesia comercial com aspirações políticas deste momento, é a conscientização de seus interesses contra os interesses da classe trabalhadora. Ele quer continuar lucrando, os trabalhadores e trabalhadoras querem se manter vivos, pois sabem que não terão chances de receber qualquer tratamento médico adequado caso sejam vitimados pelo COVID-19. Simples assim.

Não há nada de novo no mundo cômico do desenho animado, muito menos na realidade econômica concreta. O filósofo alemão Karl Marx dizia, em 1867, quando publicado O Capital, que o indivíduo concreto é a encarnação de seus interesses materiais, isto é, a  personificação de categorias econômicas, os portadores de determinadas relações e interesses de classes, e completava que o indivíduo é antes criatura que criador dessas relações sociais de produção e, portanto, de modos específicos de pensar e de agir. Nesse sentido, é natural que donos de lanchonetes e outros empresários do mundo da fantasia e do mundo real pensem como pensam. Nesse sentido, a indignação perante a imoralidade dos indivíduos que operam as engrenagens do sistema econômico deve ir além e nutrir uma vontade de enxergar além dos moralismos, do “mal” abstrato, e proceder a uma crítica consequente e materialista das relações entre quem produz não apenas os hambúrgueres, mas a riqueza social em geral, e aqueles que se apropriam desses produtos do trabalho humano.

Uma velha questão da economia política

Em 1843, Friedrich Engels descreveu a economia política como a ciência surgida pela intensificação dos intercâmbios comerciais pelo globo, sobretudo depois do século XVI. O então jovem pensador denunciava em seu texto, Esboço de uma crítica da economia política, que a economia política era a “ciência do enriquecimento, nascida do logro mútuo” e que ela trazia em sua “fronte a marca do egoísmo mais repugnante”. Dizia isso, como deixa bem claro o título de seu texto, em oposição à economia política burguesa construída até os seus dias, tendo como um de seus principais teóricos Adam Smith, para quem o livre-comércio deveria tornar-se um ponto de harmonia entre indivíduos, povos e nações. A ideia subjacente era a de que a economia capitalista promovia o bem comum, o compartilhamento universal da riqueza produzida e distribuída pelo capital. Mais ou menos como pensam os economistas e empresários de hoje [1].

No mesmo texto, Engels apresenta-nos a concepção teórica de Thomas Malthus, outro expoente da economia política burguesa do século XIX. Este parece-nos muito mais próximo da realidade atual, pois ele sustentava que a população tende a crescer além do crescimento dos meios de subsistência, e esta era a causa da miséria da classe trabalhadora britânica. Engels já observava, neste primeiro esboço de crítica da racionalidade burguesa, que a ideia central da economia malthusiana era a seguinte: “já que os pobres são precisamente os excedentes, não há nada a fazer por eles senão levá-los à morte por inanição da forma mais suave possível”. 

Esses são apenas alguns, pois na história do pensamento não faltam exemplos das mais repugnantes alternativas encontradas pelos ideólogos das classes dominantes para sua salvação em tempos de crise, travestidas de solução para a miséria dos trabalhadores e trabalhadoras. O cinismo do empresário brasileiro, Durski, assim como do caranguejo do desenho, usado aqui como recurso à reflexão, portanto, não é pioneiro na imoralidade da ideia de que é preciso que alguns milhares morram para que a economia capitalista não imploda. É apenas a expressão de que, nos momentos de crise econômica – que no presente caso é potencializada por uma crise sanitária – a sólida fantasia da comunhão de interesses entre patrões e empregados se desmancha no ar. E isso não acontece porque os indivíduos são maus, mesquinhos, egoístas por natureza, mas porque expressam verbalmente, por medo de perecer como indivíduo ou por saber que seu poder de classe pode entrar em xeque, a forma como apreendem e reconhecem conscientemente, e como vivem o conflito de interesses entre patrões e trabalhadores e o inerente antagonismo de classes no campo econômico e político.

A razão da imoralidade e a necessidade de sua superação

Assim é que se expressa, portanto, o fato de que a morte de uns 5 ou 7 mil pobres por COVID-19 é aceitável porque são eles que morrem aos montes, anualmente, pela violência urbana, pela inanição, pela tuberculose, e todo tipo de doença. É uma tautologia, sim, mas a conscientização de seus próprios interesses econômicos e políticos é muito óbvia para quem se apropria da riqueza produzida por outrem. Se não é tão óbvia para aqueles que dizem lutar por um mundo mais justo é porque ainda acreditam em ilusões políticas imediatas ou na possibilidade mediata da velha ilusão idealista de reforma espiritual, um acerto de alguns detalhes de um sistema econômico e político fundado historicamente sobre a exploração dos trabalhadores, sobre a dominação de povos e nações, sobre o enriquecimento privado com a doença e com a morte, ou com o medo delas. 

A crise de nossos dias coloca às claras a necessidade de pelo menos duas coisas, imediatamente. Em primeiro lugar, a necessidade de instrumentos teóricos capazes de apreender coisas que sempre estiveram aí e como tais coisas foram produzidas – como a miséria e a desigualdade. O resultado prático seria o diagnóstico do drama real do povo brasileiro, estruturado no caráter dependente de nossa economia e do correspondente assalto ao Estado promovido pela burguesia rentista nacional e estrangeira, e de todas as consequências daí resultantes que agora nos assaltam. Em segundo lugar, e decorrente do primeiro, é preciso anunciar corajosamente a necessidade de uma transformação revolucionária dessa ordem social, econômica, cultural e política com as especificidades da classe trabalhadora brasileira. Ela é quem deverá enterrar um sistema cuja racionalidade se manifesta, por um lado, na retórica imoral da ideologia burguesa anunciada como “deixem que morram”, e por outro, no irracionalismo moralista dos vendedores de ilusões do liberalismo de esquerda, que manifesta um oportunismo de classe para dentro das fileiras dos trabalhadores ao mesmo tempo que apenas dá roupagens mais caridosas à concepção malthusiana de amenizar a morte em massa dos pobres produzidos pelo capitalismo dependente brasileiro.

Referências:

CORONAVÍRUS: dono do Madero critica fechamento parcial do comércio. Economia UOL, 23 mar. 2020. Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/03/23/coronavirus-dono-do-madero-critica-fechamento-parcial-do-comercio.htm. Acesso em: 13 abr. 2020.

[1] Engels também observava que “quanto mais os economistas se aproximam do presente, mais se afastam da honestidade”: uma ironia que continua fina e viva.

¹Doutorando em Tecnologia e Sociedade pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná. Bolsista Capes.

Como citar:
SILVA, Igor Assoni Monteiro da. Os hambúrgueres e os mortos. Nuevo Blog, 2020. Disponível em: https://nuevoblogbr.wordpress.com/2020/04/14/os-hamburgueres-e-os-mortos/. Acesso em: ??

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