
Cintia Medeiros¹
Uma pandemia chegou em nossas vidas, atravessando oceanos, nações, bairros e ruas, causando dor, sofrimento, desespero, medo e uma única certeza: os vírus não são exigentes quanto a quem atingir. No entanto, diante de uma pandemia, decisões sobre quem deve morrer e quem deve viver são tomadas. O termo Necropolitica, cunhado por Achille Mbembe, em 2003, refere-se às maneiras pelas quais os governos decidem sobre quem vive e quem morre, ou seja, o termo diz respeito ao poder dos governos de matar ou deixar viver. A pandemia do coronavírus revelou muitas dessas maneiras. Desde os primeiros casos noticiados mundialmente de COVID-19, em especial, na China, governos, em todos os âmbitos, têm tomado decisões sobre quem deve viver e quem deve morrer. E, a cada dia que passou, eu fui me assustando ainda mais ao acompanhar as notícias do mundo, reclusa em minha casa, simples, mas com todo conforto que me é permitido. A ciência tem sua autoridade questionada por governantes, políticos, empresários e (pasmemos) pela população leiga, bem como por pretensos cientistas em defesa dos primeiros.
As técnicas rotuladas de isolamento vertical ou horizontal, tal como delineadas até então, são decisões sobre quais vidas importam. O “Fique em casa” (e quem não tem casa?), dentre outras receitas, já demarca uma decisão política sobre quem deve morrer e quem deve viver. Um governo decidiu tardiamente a enfrentar o problema, mesmo tendo sido avisado por um médico que, inclusive, teve sua morte pela covid-19. Um governo que, contra o isolamento, incentiva a população a voltar às suas rotinas para evitar um colapso na economia. Um governo que afirma que todos devem ser contaminados, mesmo sabendo que as vítimas fatais já estão marcadas. Um governo que apela para a Lei de Produção de Defesa para proibir a venda de equipamentos médicos essenciais contra a Covid-19 para outros países. Países, estados e cidades fecham suas fronteiras. Governos ignoram que imigrantes em situação não legalizada vivem em condições que favorecem a disseminação da Covid-19. E, por mais macabro que possa parecer, um governo que, sem nenhuma formação no campo, receita medicamento para a cura da Covid-19, sem nenhuma comprovação científica sobre sua eficácia. Esses são poucos exemplos de decisões sobre quem deve morrer e quem deve viver, não se resumindo a morte e a vida ao seu sentido físico, mas, também, na sua forma social, essa refletida nas condições de vida das pessoas que, a depender das decisões, são os “mortos vivos” de que Mbembe fala.
A pandemia do coronavírus nos pegou despreparados. Mas não se pode dizer que não se sabia que ela viria, pelo contrário, centros e laboratórios de pesquisas já sinalizavam para a necessidade de investimentos em pesquisas para uma vacina universal. Quanto do orçamento os governos destinam para a saúde, em termos de pesquisa e saúde pública? O avanço científico alcançado no Século XXI não foi suficiente para lidar com uma pandemia. Quantas tentativas estão em curso? O quanto os governos estão preparados para agir diante de grandes crises, especificamente, de saúde pública? A pandemia nos mostra essas respostas e não é exagero dizer que a Covid-19 tornou-se a arma dos governos para a criação de “mundos de morte”. E os governos não estão sós.
Post-pandemia e Necrocapitalismo
Eu uso o termo post-pandemia não para falar de um mundo depois que a pandemia se for, mas, sim, como um convite para a dissecação da pandemia. Essa é uma análise realizada sobre o presente que, por ser tão ampla, não cabe aqui nenhuma tentativa de pormenorizá-la. Por isso, eu me concentro no termo necrocapitalismo, cunhado por Bobby Banerjee, para se referir a práticas de acumulação de corporações e governos que envolvem, dentre outros fatores, a morte. O necrocapitalismo é a face mais perversa do capitalismo contemporâneo, um tipo de capitalismo que atingiu um estágio de expansão e acumulação nunca antes visto na história da humanidade.
Nós estamos assistindo, durante a pandemia, que as políticas neoliberais (em que governos, agências e corporações regulam a economia, mercado e cultura) sempre estiveram a serviço de uma soberania econômica, pouco se importando com as consequências sociais agora ressaltadas pela pandemia. Empresários insistem que suas empresas continuem abertas, não importa qual seja o preço, a exemplo de Bérgamo, na Itália. O que vemos atualmente não é uma criação do coronavírus, não aconteceu como consequência da covid-19. A pandemia simplesmente expôs a existência de uma população que vive em condições extremas e, como tal, vai ser eliminada naturalmente. A pandemia expôs o “racismo” incrustado nas relações sociais cotidianas com o fim de ferir, humilhar e matar, física e ou socialmente. A pandemia expôs a profundidade das disparidades sociais. A pandemia expôs a falácia dos discursos corporativos e, sobretudo, do neoliberalismo.
Eu tenho lido textos otimistas quanto às mudanças (sociais, culturais, ambientais) depois da pandemia. Sim, eu creio que haverá mudanças. O mundo não será o mesmo. O necrocapitalismo foi escancarado e encontrou adeptos em todos os estratos sociais, econômicos e intelectuais.
No entanto, a exemplo do Francis e de outros colegas, eu não quero concluir este texto com pessimismo. Eu deixo aqui algumas palavras de esperança para, quando a pandemia passar, não voltarmos aos mesmos problemas. A minha esperança está em nós, não em governos e corporações. Que nós tenhamos a coragem e ousadia de, mesmo no distanciamento social, fazer algo para garantir saúde pública de qualidade para todos(as), de modo que não sejamos, mais uma vez, solapados na próxima pandemia.
Aproveito para expressar meus profundos e sinceros agradecimentos ao SUS e a todos(as) aqueles(as) profissionais (da saúde e de serviços essenciais) que estão atuando na linha de frente, incansavelmente, em situações adversas, material e emocionalmente.
Meu muito obrigada!
¹Professora da Universidade Federal de Uberlândia. Doutora em Administração pela EAESP/FGV.
Como citar:
MEDEIROS, Cintia. A Covid-19 e a Necropolítica. Nuevo Blog, 20 abr. 2020. Disponível em: https://nuevoblog.com/2020/04/20/a-covid-19-e-a-necropolitica/. Acesso em: ??
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