A ciência dos humildes

Giselle Quaesner¹

Era uma tarde ensolarada, mas dentro de mim tudo estava nublado. Os problemas familiares batiam em minha porta e eu não tinha maturidade para lidar com eles, embora tivesse passado por experiências dolorosas. A solidão do meu quarto parecia o refúgio ideal para não enfrentar meus próprios desafios, porém, naquele dia específico, precisava sair. Andei em direção ao corredor para chegar à porta de entrada da casa. No meio do caminho me deparei com uma completa estranha. Para ela, o dia estava exibindo seus raios de luz, dava para ver em seu semblante. Ela estava passando as roupas de meu pai, calma e tranquilamente. Nos cumprimentamos, sem grandes expectativas, contudo, em seguida, ela começou a falar coisas profundas sobre a vida, família e as dificuldades que eu enfrentava naquele momento. Eu nunca esqueci daquele momento.

Comecei a frequentar a casa daquela pessoa, a qual carinhosamente chamamos de Lourdes. Uma mulher semianalfabeta que morava e ainda mora em uma humilde casa localizada em região pouco valorizada. Seu labor, desde a infância, realizava no mercado informal, por meio de serviços de limpeza e cuidados domésticos. Chegou a ter três trabalhos diferentes por dia, aliados aos cuidados dos cinco filhos, os quais criou, boa parte do tempo, sozinha. Nunca a vi reclamar de sua rotina ou profissão, tampouco da falta de oportunidade de estudar ou das diversas violências que fizeram parte do seu cotidiano, seja pela sua cor, classe social, escolaridade ou associadas a gênero, que eram ainda mais evidentes na vida das mulheres antigamente.

Eu costumava visitá-la semanalmente, no período noturno, após ela voltar do trabalho, para tomarmos chá e conversarmos sobre diversos assuntos, enquanto ela passava roupas incessantemente, afinal o ato de levar trabalho para casa não se limita ao uso da tecnologia, como muitos/as imaginam e se faz presente há muito tempo nas camadas menos abastadas da pirâmide social. Muito aprendi com ela sobre os seres humanos e suas relações, de formas que dificilmente vejo em profissionais qualificados/as, pois seus interesses nunca estiveram centrados em retorno financeiro ou na obtenção de algum mérito que a colocasse em uma posição de reconhecimento social.

Certa noite, enquanto tomávamos chá, ela me revelou alguns segredos de família que me fizeram sentir importante por conquistar a confiança de uma pessoa tão sábia. O que faz ela ser especial é a importância que ela dá para os anseios e necessidades dos/as outros/as, uma habilidade que o diploma ou título não proporciona, mas que todos/as deveriam carregar dentro de si. Ela sempre fez e faz as pessoas se sentirem especiais, mesmo quando não se conseguia ou consegue enxergar tal possibilidade. Aquela humilde figura tornou-se uma das minhas maiores referências, mesmo em uma realidade na qual estou cercada por brilhantes figuras e seus recheados diplomas.

A oportunidade, não presente na vida de pessoas como a minha amiga Lourdes, de estudar me ajudou a ver o mundo de outra forma e, certamente, enxergar que a importância do conhecimento acadêmico é inegável, embora muitos/as desprezem e tentem condená-lo à obsolescência. Entendo perfeitamente a necessidade de defendê-lo a todo custo, principalmente o ensino público gratuito, afinal permite aos seres humanos o acesso a conhecimentos e informações que podem auxiliar, transformar ou, até mesmo, salvar vidas. Entretanto, não é a única fonte de conhecimento que deve nos guiar.

O mundo que conhecemos hoje, indubitavelmente não seria o mesmo sem os estudos e reflexões adquiridas no ambiente acadêmico e isso o torna essencial, muito embora, perigoso, visto que em mãos sedentas de poder, pode tornar-se uma arma poderosa e letal (às vezes, literalmente, como o caso das bombas químicas e biológicas). Sem contar o status que proporciona ao/à cientista de detentor/a da verdade, o que acaba atraindo muitas pessoas pelos motivos errados, as quais acreditam se abster de valores éticos e morais, desde que estejam produzindo “verdades” ao mundo.

Em minha concepção, o conhecimento científico carrega enorme responsabilidade de servir ao bem-estar social e tudo que se desenvolve fora dessa premissa serve única e exclusivamente à manutenção das estruturas hierárquicas e capitalizadas que moldam a sociedade contemporânea. Logo, o/a cientista deve ter a humildade de compreender que ter acesso a um tipo de conhecimento não o/a torna detentor exclusivo desse recurso, tampouco a figura mítica e supervalorizada que muitos/as visualizam.

Boa parte do conhecimento vem da experiência, de contato com a natureza e das percepções do mundo à nossa volta, de pessoas como a Lourdes que, mesmo sem o aporte teórico ou empírico das instituições de ensino, consegue absorver e transmitir os saberes de diversas naturezas, acolhendo todos/as sem distinção ou desdém. Podemos lembrar também de muitos saberes que, embora tenham criado popularidade por vias científicas, vieram de culturas ancestrais, como o caso da penicilina que foi descoberta por indígenas muito tempo atrás.

Tolstói, embora conhecido por seus romances, realizou, também, duras críticas à ciência como conhecemos, por seu caráter direcionado aos interesses políticos, ou, em linguagem metafórica proposta pelo autor, por se comportar como uma lanterna, cujo feixe de luz ilumina somente a direção para a qual é apontado. Em uma sociedade mercantilizada, o feixe de luz, ou o investimento em ciência, é direcionado às necessidades ou interesses dos detentores de poder ou recursos, por isso há tantas dificuldades sem solução e enfermidades sem cura. O que nos falta é a sabedoria dos humildes para criarmos uma ciência que amplie seu feixe de luz e ilumine todos os setores.

Eu continuo frequentando a casa de minha amiga Lourdes. Hoje ela não passa mais roupas, pois descobriu ser portadora de 2 doenças degenerativas que a impedem de realizar grandes esforços, mas continua ajudando todas as pessoas que batem à sua porta, compartilhando sua grande sabedoria e boa vontade em promover o bem-estar social, mesmo com sua saúde debilitada. Se a nossa ciência se desenvolvesse do mesmo modo que pessoas como a Lourdes compartilham seus conhecimentos, com paixão, solidariedade e acolhimento de todos os anseios, provavelmente haveria uma mudança não somente em âmbito intelectual e social, mas moral de todas as estruturas.

¹Doutoranda em Tecnologia e Sociedade pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). Bolsista pela Capes.

Como citar:
QUAESNER, Giselle. A ciência dos humildes. Nuevo Blog, 24 abr. 2020. Disponível em: https://nuevoblog.com/2020/04/24/a-ciencia-dos-humildes/ . Acesso em: ??

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