Administração, Pecado Original e Lei de Natureza: o problema entre teoria e prática

Marcelo de Souza Bispo¹

Um dos maiores problemas do que conhecemos como “ciência da administração” é a sua incapacidade de dialogar com a sociedade da qual ela faz parte. Esta afirmação parece forte e pode incomodar muitos dos meus colegas que investem muito do seu tempo na construção dessa ciência. A tese que eu vou defender aqui é de que a ciência da administração (como a conhecemos hoje)  tem um pecado original por ser fruto da modernidade e ter sido criada para a eficácia da produção em massa na época em que surgiu há pouco mais de cem anos atrás.

Mas onde há pecado nisso?

A resposta é justamente a criação de uma ciência responsável pela ampliação e controle da produção em massa assumindo que isso bastava para fazer o mundo melhor. Talvez, em meados do século XX, organizar a produção e as funções dentro daquilo que hoje chamamos de empresa fosse uma grande contribuição para época. Mas, desde lá, o mundo passou por muitas transformações com duas guerras mundiais, a criação da imprensa, as manifestações de maio de 1968, as crises do petróleo de 1929 e 1970, o advento da internet e a crise financeira de 2008, por exemplo. Atualmente estamos no meio de uma crise sanitária-econômica por conta do COVID-19 em que soluções “prontas” anteriormente pensadas não estão sendo capazes de responder a contento. E por que eu estou falando de tudo isso? É porque em 2020 muito do que produzimos na ciência da administração ainda assume que a principal contribuição a ser dada é o aumento da produção, agora com forte viés da maximização dos lucros devido ao aumento da competição global e o avanço do neoliberalismo a partir dos anos 1970 com a crise do modelo de bem-estar social. Isso é comumente chamando de “desenvolvimento econômico”. Assim como a administração, a ciência econômica também sofre dos males da origem marcada pela modernidade, o pecado original.

 A administração (como a economia) é vista na sociedade como promotora  de conhecimentos “neutros” e “racionais”, portanto, não problemáticos. Barbara Townley (2002) questiona o entendimento de que a administração é uma prática racional e prefere qualificá-la como abstrata. A administração é abstrata para ela porque é “desencarnada” (descolada) do mundo vivido. Por uma suposta “neutralidade” e uma crença de que o desenvolvimento de métodos padronizados é capaz de oferecer resultados padronizados, a administração pode ser aplicada em qualquer contexto da mesma maneira assumindo uma condição de “Lei de Natureza”, para utilizar um termo comum dos primeiros teóricos da ciência política quando associavam comportamentos sociais (portanto construídos socialmente) a uma condição biológica determinista e imutável por serem “naturais”. O vício de chamar comportamentos sociais como “naturais” é comum na nossa sociedade para dizer que algo “é assim mesmo”. Desse modo, administração e economia assumiram um status de conhecimentos “naturais” e, portanto, inquestionáveis porque “é assim mesmo”. Tal entendimento “neutro”, “desencarnado” e “natural” sobre a administração faz com que se crie um paradoxo no que significa “administrar”. Ao mesmo tempo em que administrar significa controlar, coordenar e dirigir (ter o comando), por outro lado, a criação de modelos que são “universais” com o objetivo de resultados aplicáveis em qualquer contexto, faz com que não seja mais possível administrar. Isso porque leis, princípios e regras substituem a capacidade do(a) administrador(a) de fazê-lo. Está aí o paradoxo, a administração na sua concepção moderna e desencarnada foi criada para não administrar, uma vez que basta “encontrar” modelos que representem a “Lei de Natureza” que eles fazem o trabalho “sozinhos”.

Assim, a crença na lei frustra muita gente porque são incontáveis as vezes em que a Lei de Natureza falha surgindo aí uma fala muito famosa no cotidiano, “na teoria é uma coisa, mas na prática é outra!”. A separação entre “teoria” e “prática” nada mais é do que o pecado original se manifestando e o criador ficando refém da sua própria criatura. Mas como o pecado, neste caso, não é reconhecido como tal, mas sim como a palavra de Deus por meio dos manuais de administração e economia que fazem o papel da bíblia, também virou “assim mesmo” dizer que teoria é uma coisa e prática é outra. A evangelização dos fiéis dentro das famosas e prestigiadas igrejas (escolas de negócios) vai cada vez mais criando o dualismo (teoria-prática) e renovando a “Lei de Natureza” ou a fé, se assim preferirem. Há anos atrás fui fazer uma avaliação de curso superior em administração em uma faculdade e o método de ensino era todo baseado em “casos de sucesso”. Durante os dois dias em que fiquei trabalhando lá a direção da instituição me perguntava, “professor, o que o senhor acha do nosso método?”. Eu não respondi nenhuma das vezes, sempre desviando o assunto. Mas agora vou dar a resposta, não acho uma boa estratégia pedagógica! Isso porque “casos de sucesso” induzem os(as) estudantes a “copiar” o modelo e não a desenvolver meios próprios para resolver problemas. Eu acredito que o(a) administrador(a) é um(a) profissional que deve ser capaz de criar soluções CONTEXTUAIS para resolver problemas. Isso implica variação de estratégias de acordo com a situação para ter sucesso. Portanto, para mim, o ideal não seria trabalhar com “casos de sucesso”, mas com “casos de fracasso” para permitir a oportunidade aos(as) estudantes de aprender a criar e entender que cada caso possui várias possibilidades de solução em razão do seu CONTEXTO.

Por que eu falei tudo isso até agora? Foi para CONTEXTUALIZAR que a ciência da administração só vai se conectar com a sociedade quando ela for capaz de entender e dialogar com a própria sociedade. Nesse sentido, eu preciso dizer aqui que pensar em “uma sociedade” favorece o discurso dominante de “Lei de Natureza” e não representa as variações de toda ordem existentes na vida humana. Portanto, a administração precisa ser capaz de se conectar com as sociedades nas quais ela está inserida, interagindo, interpretando e buscando entender seus movimentos e idiossincrasias para poder oferecer colaboração que faça sentido e seja capaz de tornar teoria e prática em uma simbiose e não em uma dicotomia.

Referências:

TOWNLEY, Barbara. Managing with modernity. Organization, v. 9, n. 4, p. 549-573, 2002.

¹Doutor em administração pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e estágio pós-doutoral em teoria social pela Universidade de Kentucky (EUA). Professor da Universidade Federal da Paraíba no departamento de administração e do Programa de Pós-graduação em Administração (PPGA/UFPB). É co-líder do Núcleo de Estudos em Aprendizagem e Conhecimento (NAC-CNPq).

Como citar:
BISPO, Marcelo de Souza. Administração, Pecado Original e Lei de Natureza: o problema entre teoria e prática. Nuevo Blog, 29 abr. 2020. Disponível em: https://nuevoblog.com/2020/04/29/administracao-pecado-original-e-lei-de-natureza-o-problema-entre-teoria-e-pratica/. Acesso em: ??

Um comentário em “Administração, Pecado Original e Lei de Natureza: o problema entre teoria e prática

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  1. Adorei o texto! Trabalho com marketing e há muito tempo tenho questionado sobre isso procurando levar os alunos a pensarem nas premissas do marketing de forma também a resolver problemas na sociedade, sem apenas olhar para as grandes marcas e exemplos de sucesso. Marketing não é só a “ciência do diabo que faz você comprar o que você não precisa com o dinheiro que você não tem” (citação de um colega do mestrado).. pode ser mais, pode trabalhar em favor da sociedade…

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