Fazemos caridade, mas precisamos de justiça

Raquel Dorigan de Matos¹

Acho bonita a caridade…… ela veste bem uma sociedade nua……. alivia o sentimento de culpa…… aquece a alma ……. fortalece o coração contrito …. garante um lugar no céu.

Mas o que precisamos é justiça….. sim ….. justiça …..considerando que ela não apenas veste a sociedade ….. ressignifica.

O sistema de capital, entendido como um modo de controle sociometabólico, apresenta-se em um sistema de controle sem sujeito, no qual os interesses e desejos subjetivos, mesmo daqueles que o implementam, são suplantados pelas determinações e imperativos objetivos desse sistema (MÉSZÁROS, 2002).  

A natureza contraditória das relações de produção dá-se à medida que a força de trabalho passa a ser categorizada como mercadoria, portanto, propriedade do capital. A divisão dos sujeitos em proprietários dos meios de produção (capitalistas) e em vendedores da força de trabalho (proletários) determina a contradição primeva.

Dessa feita, a mercadoria força de trabalho, ao realizar o seu valor de troca, possibilita a alienação do seu valor de uso (MARX, 1985). Assim, a compra da força de trabalho determina que ela pertence ao comprador (capitalista). No processo de trabalho, o valor pago pelo tempo de uso da força de trabalho determina que tal força pertence ao empregador, e não mais ao indivíduo que a vendeu.

A realidade material que prevalece neste momento do século XXI apresenta novos desafios para concepções de aprendizado. Esses desafios são mediados e estabelecidos pelos entendimentos de aprendizado cultural e historicamente situado desenvolvidos em momentos singulares de tempo e espaço. Na perspectiva de Marx, é preciso não apenas pensar sobre problemas encontrados na prática social, mas envolver-se na transformação das condições materiais que são a fonte desses problemas, entendendo que esse envolvimento e intervenção é parte do processo de análise ou compreensão.

Os conflitos sociais têm seus fundamentos vinculados à luta pelo reconhecimento social, bem como à luta pela redistribuição da riqueza material produzida pela sociedade e pela representação paritária nas esferas de decisão (FRASER, 2003; 2008).

Para Fraser (2008), as categorias reconhecimento, redistribuição e representação política correspondem a três dimensões de justiça: cultural (reconhecimento); econômica (redistribuição); e política (representação). É na dimensão política que se desenvolvem as lutas por distribuição e reconhecimento. Do ponto de vista analítico, observam-se três categorias: reconhecimento social; redistribuição igualitária da riqueza material; e representação paritária nas esferas de decisão.   

As demandas da dimensão política da justiça são o pertencimento e o procedimento, sendo a representação seu mote. De um lado, no que se refere ao estabelecimento de limites do político, a representação aparece em uma perspectiva de pertencimento social. Em uma definição de quem é incluído ou excluído da comunidade dos que têm direito a reivindicações de justiça. De outro lado, no que diz respeito às regras de decisão, se estabelece o interesse por procedimentos que estruturam os processos públicos de confrontação. Nesse ponto, o interesse se concentra nas condições nas quais os incluídos na comunidade política estabelecem suas reivindicações e arbitram suas disputas. No entendimento de Fraser (2008) os critérios de justiça devem estar presentes para que haja a participação em igualdade, com pleno direito de interação social.

A capacidade de exercer a participação política é dependente das relações de classe e de status. Mesmo em comunidades políticas supostamente democráticas observa-se que a má distribuição e o reconhecimento falido contribuem para subverter o princípio da igual participação política para todos os cidadãos. Sem voz política, esses cidadãos são incapazes de estruturar e defender seus interesses referentes à distribuição e ao reconhecimento, reforçando um círculo vicioso, o qual nega a alguns a oportunidade de participação como pares na vida social. Para se assegurar uma representação política que tenha efetividade social é preciso que o processo de estabelecimento de fronteiras seja democrático.

Nesse sentido, deve ser concedida posição a todos os que não são membros ou participantes, mas estão significativamente afetados pela instituição ou pela prática em questão.        

O princípio da paridade participativa, ao encerrar o caráter reflexivo consubstancial, capaz de problematizar tanto a substância como o procedimento, permite avaliar os acordos sociais em seus contentos de justiça.

Quando os limites de uma sociedade política são estabelecidos de tal maneira que excluem injustamente alguns sujeitos de toda a oportunidade de participar das decisões que os afeta observa-se a divisão do espaço político em sociedades políticas delimitadas, estabelecendo um procedimento injusto do processo decisório.

José Saramago (1995) lembra a “responsabilidade de ter olhos quando os outros o perderam.” “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.” Não se trata só de reparar no significado das coisas, mas também de proceder à reparação do que foi perdido, ou mutilado. Mais do que caridade pontual, a sociedade espera, há muito, por justiça permanente.

Referências:

FRASER, N. Social Justice in the Age of Identity Politics: Redistribution, Recognition, and Participation. In: FRASER, N.; HONNETH, A. Redistribution or Recognition? A political-philosophical exchange. London: Verso, 2003. p. 07-109.

FRASER, N.  Escalas de Justicia. Barcelona, Herder Editorial, 2008.

MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. São Paulo: Nova Cultural, 1985.

MÉSZÁROS, I. Para Além do Capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo, 2002.

SARAMAGO, J.  Ensaio sobre a Cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

¹Doutora em Administração pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Pós- Doutora pela UFPR. Professora da Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO).

Como citar:
MATOS, Raquel Dorigan de. Fazemos caridade, mas precisamos de justiça. Nuevo Blog, 01 maio 2020. Disponível em: https://nuevoblog.com/2020/05/01/fazemos-caridade-mas-precisamos-de-justica/. Acesso em: ??

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