O que a política tem a ver com tudo isso?

Rafaela Mota Ardigó¹

Tal qual a vida, a história é uma túnica sem costura que flui transbordante, ora por águas tranquilas, ora por rios turbulentos. Um país não pode isolar-se dos fatos do mundo como se estivesse alheio a ele, em um vácuo perfeito, sem conexão com o que acomete o resto do mundo. Está reflexão, inspirada nas palavras do diplomata Rubens Ricupero (2017) é, no mínimo, profundamente esclarecedora sobre os cuidados que devemos ter, como nação, com nossos caminhos internos estando como estamos inseridos em um contexto de globalização. Felizmente, também indica a aspiração pela qual lutam e labutam uma gama considerável de incansáveis e, por que não, brilhantes brasileiros.

Infelizmente, no entanto, observa-se que de norte a sul das Américas essa não parece ser a aspiração de importantes atores políticos nacionais. Os muros invisíveis que construímos estão, a cada dia, mais visíveis. Não tardo a dizer que também instransponíveis.

“Ele não tem culpa”. “Ele está certo, querem acabar com a economia”. “As pessoas não percebem que ele só está querendo conter uma crise muito maior”. “Isso é tudo culpa da mídia”. “A mídia exagera”. “Eu não acredito que os casos irão subir”. “A OMS está somente fazendo política, criando alarde, assim como todos que seguem suas recomendações”. “Se você colocar na cabeça que a doença vai te pegar, ela te pega. É só não pensar nisso”. “Esses intelectuais são todos uns babões…”. E, entre festas e outros descomedimentos perante as medidas de isolamento e distanciamento social, indicada pela OMS como a melhor maneira de contenção da epidemia, a frase que mais tem me incomodado dentre o que tenho presenciado em parte do meu círculo de convivência pessoal:

O que a política tem a ver com tudo isso?

Henry Kissinger (Kissinger, 1994), um influente diplomata americano, diz que a política é a arte de resolver conflitos através da negociação e do diálogo. O outro meio disponível é a guerra. O pragmatismo político, que consiste em fazer escolhas com base na experiência e no conhecimento disponível, tem sido uma escolha razoavelmente bem adotada para realizar política internacionalmente uma vez que, ao escapar de achismos assombrados pelas ideologias, pauta-se no racionalismo científico para tomada de decisão. Se está linha filosófica não é perfeita para todas as vírgulas de uma sociedade heterogênea como a nossa, certamente o é em campos onde a materialidade dos fatos não lhe pode ser negada, como no caso da economia e da saúde. A decisão pragmática é, portanto, baseada na realidade material que nos é posta. E o que a política tem a ver com tudo isso?

Montesquieu (Fortes, 1993), expoente iluminista inspirador das constituições democráticas modernas que, longe de ser um revolucionário no sentido marxista do termo, – e ainda assim o sê-lo em todo o seu provincianismo aristocrático, – tem como tese central de sua principal obra que o espírito das leis de uma dada nação nada mais é do que a ideia predominante de uma sociedade. Ao legislador e ao governante não cabe a consulta de seus caprichos ao elaborar a lei, mas cabe a incumbência de ler nas entrelinhas a complexidade das relações sociais de seu povo levando em consideração  seus costumes e seu momento histórico, legislando de forma a elaborar um contrato social adequado às circunstâncias de sua época.  Em Montesquieu a ideia de justiça é desvinculada da ideia de moral, pois a justiça é objeto e ação de realidades sociais distintas.

E o que a política tem a ver com tudo isso?

De fato, e honestamente não creio que seja a intenção nem de seu crítico mais fervoroso, culpar um presidente por uma pandemia global. De fato, sem resquício de dúvidas, haverá recessão econômica. De fato, a mídia sensacionalista existe, mas ela coexiste com um gama nada desprezível de profissionais sérios e comprometidos com seu dever social de informar os fatos. De fato, por vezes, a ciência falha em seu papel de disseminar o conhecimento através da necessária mediação pelo diálogo que preferencialmente deve ser simples e compreensível por todos. Talvez desta incompreensão a que estão sujeitos os leigos, não habituados a complexidade das teorias, surja o atual ódio ao conhecimento. Mas, persiste o incomodo, o que a política tem a ver com tudo isso?

É através da ação política que são delineados os atos práticos da realidade. A política pode ser inclusiva ou exclusiva, irá depender, muito aquém de agendas políticas de esquerda ou direita, conservadoras ou liberais, do contrato social que se busca estabelecer como sociedade. Em um contexto global este contrato social precisa ser ainda mais repensado afinal, apesar de vivermos em realidades nacionais distintas, o planeta terra ainda é o único no qual habitam os seres humanos.

Por exemplo, em uma pandemia podem-se tomar decisões econômicas baseadas no imediatismo consumista, refém do lucro ao acionista e, por vezes, desumano nas relações de trabalho com as classes que não detém os meios de produção,- mesmo que estas estejam alienadas deste fato, – ou podem-se tomar decisões econômicas baseadas na estabilidade e na coesão social futura, na qual a geração de lucros econômicos se dê através de uma atividade produtiva mais coerente com as reais necessidades das pessoas e do meio ambiente atual e, na qual, as relações de trabalho sejam eivadas de justiça, apesar da moralidade vigente das carteiras verdes e amarelas.  

Outro exemplo. Na saúde, atividade ainda mais concreta que a economia, acontece o mesmo. As decisões políticas tomadas em uma pandemia podem ser pragmáticas ou subjetivas. No primeiro caso, o político baseará suas decisões e ação na racionalidade cientifica seguindo as orientações técnicas dos profissionais da saúde. No segundo caso, agirá como um ator do abstrato, tomando decisões e agindo de acordo com suas convicções pessoais.

Como cidadãos, cabe avaliarmos se a subjetividade vigente na política que rege alguns dos maiores países do continente americano é mais letal ou mais protetiva a vida e, sempre se questionar, de qual vida. A resposta nos dá a dica sobre o nosso futuro. Se ela não te agradar, seja porque você é contrário a agenda política atual em seu cerne ou, simplesmente, porque você não é apático ao fato de que nem tudo depende de nossas crenças e desejos, por mais positivo que sejamos, somente a ação política é capaz de lhe fornecer um contrato social alternativo. E, em meio ao caos, pelo desejo da paz em lugar da guerra, é por isso que política tem a ver com tudo isso.

Referências:

RICUPERO, Rubens. A diplomacia na construção do Brasil. Versal: 1ª edição, Rio de Janeiro, 2017.

KISSINGER, Henry. Diplomacy. Simon & Schuster: Rockefeeler Center, New York, 1994.

FORTES, Luiz R. Salinas. O iluminismo e os reis filósofos. Editora Brasiliense: 3ª edição, São Paulo, 1981.

¹Doutoranda em Tecnologia e Sociedade pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR).

Como citar:
ARDIGÓ, Rafaela Mota. O que a política tem a ver com tudo isso?. Nuevo Blog, 02 maio 2020. Disponível em: https://nuevoblog.com/2020/05/02/o-que-a-politica-tem-a-ver-com-tudo-isso/. Acesso em: ?

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