
Francis Kanashiro Meneghetti¹

Imagem: Sandro Pereira/ Estadão Conteúdo
A imagem da cova coletiva aberta em Manaus causou uma série de reações. A possibilidade da nossa morte ou de pessoas que amamos por causa do COVID-19 está mexendo com os ânimos de todos. Diante dessa realidade, as reações das pessoas podem ser as mais diversas. Existem aqueles que apelam para religião – quase sempre associado a um Deus – para encontrar alguma racionalidade que explique o que está acontecendo e o que pode vir a acontecer no futuro. Outros, que se orientam pela ideia da existência de uma força/energia transcendente que guarda em si mesma explicação para a existência da vida. Existem, também, os que acreditam no fim de tudo, ou seja, no nada após a morte. Esta posição pode ser ainda mais confortável pois se não há algo depois da vida, não há com o que se preocupar no futuro. O fato é que estamos com medo. E este é um sentimento que mexe profundamente com nossa psique, ou seja, com a forma como percebemos a realidade. As reações são as mais diversas possíveis e estão intimamente associadas à nossa capacidade física, emocional, a nossa história de vida individual, dentro de um coletivo maior, e a forma como a sociedade está estruturada.
Ante as manifestações recentes em relação a foto da cova coletiva em Manaus e outras que mostravam enterros sendo realizados em condições diferentes dos habituais em outros cemitérios é possível afirmar que existem 4 (quatro) formas de reações, todas associadas ao medo extremo (pânico, horror, terror) gerados pela possibilidade da morte. São elas:
1ª.) Dos Alienados: Os que simplesmente não conseguem entender o que se passa na realidade ou não tem condições de compreendê-la devido a fatores inerentes as condições físico-psíquico-emocionais. Fazem parte as crianças com muito pouca idade, os deficientes mentais graves, etc.
2ª.) Dos Negacionistas: Os que negam as evidências (por exemplo, fotografias, reportagens, boletins informativos oficiais, testemunhos de pessoas ligadas as vítimas, etc. ) e os fatos (atestados de óbitos dos mortos, o corpo da vítima, os enterros dos corpos dentro dos caixões, etc.) que constituem a realidade. A dor extrema e insuportável da possibilidade da própria morte ou de pessoas que gostam e amam, as fazem questionar todo conjunto de evidências e fatos que constituem a realidade. Dentro dessa forma, três atitudes são as mais comuns: Primeiro os que não agem, não se manifestam, porque ficam paralisados em função do impacto emocional. Estes se alienam em seus mundos, tentando criar sua própria realidade para conseguir suportar a vida. Segundo, os que agem tentando influenciar os outros para convencê-los a viver a realidade paralela que criaram com o objetivo de evitar que os mesmos sintam a dor que sentiram. Terceiro, são os que agem atacando aqueles que produzem e apresentam as evidências e os fatos. Geralmente jogam a culpa do acontecimento (a pandemia, por exemplo) nos outros, frequentemente nos que tentam apresentar (jornalistas), nos que produzem (cientistas), nos que vivenciam (equipes médicas), nos que defendem (alguns agentes públicos) que a realidade se constitui de evidências e fatos.
3ª.) Dos Realistas: Os que entendem a gravidade da realidade. Estes vivem a realidade a partir das evidências e fatos que lhe são apresentados. Apesar do medo da possibilidade da morte, não negam a realidade porque têm condições cognitivo-psíquico-emocionais de suportá-la e entendê-la. As atitudes dessas pessoas também podem ser diferentes. Primeiro, de não agirem por não acreditar que são capazes de influenciar a realidade. Estes estão sobre a influência do ceticismo e da impotência. Segundo, os que agem tentando influenciar os outros, com a perspectiva de que ajudar os outros é ajudar a si mesmo, de certa forma. Entendem que suas atitudes individuais não mudam substancialmente a realidade, mas que de alguma forma são capazes de influenciá-la. Terceiro, os que agem atacando os outros, principalmente os que negam as evidências e os fatos. Tentam mostrar que existe uma realidade baseada em evidências e fatos e que estes se constituem a realidade per se. Ignoram que existam limitações cognitivas, emocionais, psíquicas, e inerentes a própria história dos indivíduos que possam dificultá-los a lidar com a realidade.
Nessas formas de lidar com a realidade são difíceis de estabelecer a responsabilidade de cada pessoa, pois não conseguimos “medir” a real intenção que motivam suas ações. Mas é evidente e factual que somos diferentes uns dos outros. Temos capacidades cognitivas e emocionais diferentes. Nossas condições psíquicas se estruturam de formas distintas, pois nossas histórias são diferentes. Outro problema, igualmente grave, é que a sociedade brasileira, baseada em diferenças brutais de classes, educacionais e de condições materiais e econômicas nos colocam em condições muito distintas que levam a interagir com realidade de maneira muito diferentes uns dos outros. Atribuímos pesos, valores e importâncias diferentes para as evidências e fatos. Exemplo disso é a baixa capacidade de interpretar textos, gráficos, análises estatísticas ou mesmo imagens.
Precisamos partir de uma evidência comum. A pandemia é grave, pois move nos alienados, negacionistas e realistas o sentimento mais profundo nos humanos, o medo da morte. Há a real possibilidade de morrermos ou vermos pessoas conhecidas e próximas morrem por causa da COVID-19; ou, ainda, de problemas decorrentes direta e indiretamente dela (fome, falta de atendimento médico relacionados a falta de tratamento de outras doenças, suicídios, assassinatos em decorrência da violência doméstica crescente, etc.). Não podemos negar que evidências e fatos existem independentes da nossa vontade. E que todos devem ser levados em consideração, pois o problema é complexo, sistêmico e estamos todos envolvidos dialeticamente neles, queiramos ou não. O tempo é de nos reconhecermos uns aos outros pelo medo que sentimos. Não de qualquer medo, mas o medo da morte. A mais antiga e visceral de todos. E o pior, de sermos enterrados nas valas coletivas, por COVID-19 ou por outras causas. Afinal, em tempo de congestionamento nos cemitérios e pelo pânico gerado pela pandemia, o que se faz é enterrar os mortos o mais rápido possível, sem direito a um funeral e últimas homenagens.
Por fim, tem a quarta (4°) forma de reação: Dos Canalhas mesmo! Bem, estes têm desprezo pela vida acima de tudo. São movidos pelo egoísmo e para incapacidade quase que total de empatia pelos outros. Consideram que o mundo existe em função deles. Negam a realidade se ela não lhes forem favoráveis. Têm desprezo pelas evidências e fatos quando eles não criam a realidade que lhes convém. Baseiam-se nos seus próprios desejos, forçando que todos acreditem que a realidade existente é a sua. Procuram manipular os alienados, os negacionistas e os realistas; mas preferem atacar esses porque não aderem as suas fantasias e a produção de evidências e fatos falsos. Os canalhas, quando chegam ao poder, colocam em risco todos os outros. A questão é que, queiramos ou não, as evidências e os fatos independem da nossa vontade. Elas podem ser questionadas, mas dificilmente podem ser negadas. E a história nos mostra que negar a realidade por acreditar em canalhas pode ser trágica, como nos mostra a história do Brasil e do Mundo!
¹Doutor em Educação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professor no Programa de Pós-Graduação em Tecnologia e Sociedade e no Programa de Pós-Graduação em Administração da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR).
Como citar:
MENEGHETTI, Francis Kanashiro. Quem tem medo da vala comum?! Nuevo Blog, 03 maio 2020. Disponível em: https://nuevoblog.com/2020/05/03/quem-tem-medo-da-vala-comum/. Acesso em: ?
Deixe um comentário