
Ricardo Lobato Torres¹
A pandemia da COVID-19 trouxe como consequência a adoção generalizada de distanciamento social e de seu extremo, o confinamento, pelos governos locais. Dada a alta propagação do vírus, a alta taxa de mortalidade, principalmente entre idosos com comorbidades, e a falta de tratamento farmacêutico, estas medidas desesperadas tornaram-se fundamental para o controle da pandemia, a fim de evitar o colapso dos sistemas de saúde nos países afetados.
A consequente paralisação das diversas atividades econômicas não passou desapercebida pela sociedade e, não por acaso, os economistas têm disputado espaço na mídia com infectologistas e especialistas em saúde coletiva. O não-produzir e o não-vender trazem obviamente impactos imediatos sobre a capacidade de geração de receita e renda a empresas e trabalhadores. Não deixa de ser preocupante, porém, o perigoso e falso dilema levantado entre saúde e economia, com a segunda se sobrepondo à primeira no discurso das pessoas, que vai desde o Presidente da República até os familiares próximos reproduzindo essa ideia em conversas por redes sociais.
Diante do iminente colapso do sistema econômico, uma série de ações governamentais de socorro a empresas e trabalhadores tem sido proposta mundo afora. Como que num passe de mágica, as equipes econômicas da maioria dos países – que rezam a cartilha neoliberal – se transformaram em keynesianos. A situação é particularmente mais “interessante” no Brasil. Não bastasse a aprovação da Emenda Constitucional nº 95 em 2016, que estabeleceu o congelamento dos gastos do governo federal por um período de 20 anos, ascende em 2019 à Presidência da República a figura “polêmica” – para não listar outros adjetivos – de Jair Bolsonaro, que nomeia para o “Superministério da Economia” o ultraliberal Paulo Guedes. É mesmo “curioso” que a extrema direita brasileira, embora se diga patriota no discurso, seja apenas autoritária e totalmente “desapegada” da soberania nacional. Com o mote de “vender tudo, tudo o que pudermos vender”, Guedes deixava claro à nação qual seria o rumo que tomaríamos daquele momento em diante. Mas enfoquemos o essencial.
Uma vez acometido pela pandemia e o exponencial crescimento dos casos confirmados e das mortes por COVID-19, os brasileiros assistiram um verdadeiro espetáculo de inépcia do governo federal para lidar com a pandemia. Diante da apatia da União, governadores e prefeitos resolveram agir por conta própria e decretaram medidas de distanciamento social e confinamento para evitar a proliferação da doença e o colapso dos sistemas públicos de saúde locais. O próprio Congresso Nacional passa a ser protagonista na busca de soluções à pandemia e, é claro, à economia.
Dentre essas medidas, convém destacar as mais relevantes: o decreto legislativo de estado de calamidade pública, que autoriza o Poder Executivo a efetuar gastos acima do teto orçamentário para ações de combate à pandemia; a aprovação do auxílio emergencial a trabalhadores informais e desempregados – de iniciativa do Poder Executivo, mas substancialmente alterado pelo Poder Legislativo – com elevação do valor de 200 para 600 reais por pessoa, limitando-se a 1.200 reais por família; e a tramitação – ainda não aprovada – do projeto de emenda constitucional para a implantação do chamado “orçamento de guerra” que, dentre outras coisas, prevê a possibilidade de o Banco Central do Brasil comprar diretamente do Tesouro Nacional os títulos da dívida pública federal, não apenas para seu refinanciamento, como previsto até então na Constituição.
Em face a esses acontecimentos, muitos economistas heterodoxos ingenuamente comemoram a aparência do keynesianismo forçado ao governo brasileiro, este claramente neoliberal e cuja agenda era – e ainda é – um aprofundamento da “Ponte para o Futuro” de Michel Temer, política que decretou a morte do social-desenvolvimentismo do Partido dos Trabalhadores (que este tampouco engane o leitor, pois no fundamental não atacou às bases da agenda neoliberal no Brasil).
Que fique claro a que nos referimos com o termo neoliberalismo. Trata-se de uma doutrina, isto é, de um conjunto de ideias acerca do papel do Estado na economia. Embora venha em mente sempre o discurso de Estado mínimo, é preciso compreender que o mínimo que se defende é da destinação de recursos do orçamento público para as políticas sociais, mas em momento algum se trata de alguma espécie de anarquismo ou ausência de um Estado. Defende-se, isso sim, outra forma de atuação do Estado de acordo com interesses de frações da classe capitalista. No Brasil, essas frações são representadas pelos latifundiários, corporações multinacionais, instituições financeiras, grandes grupos do comércio varejistas, entre outros. E, como logo se observa, disso resulta um conjunto específico de políticas econômicas, que serve aos interesses desses grupos.
O neoliberalismo deve ser entendido também como estágio atual da evolução do sistema capitalista de produção em nível mundial. Momento histórico em que a conservação da riqueza e a acumulação do capital é redirecionada da produção para as finanças. E neste aspecto, as políticas econômicas desempenham papel fundamental para a manutenção de ganhos extraordinários no mercado financeiro de toda ordem, seja pela manutenção de elevadas taxas de juros, da garantia de superávits primários dos governos, da livre mobilidade do capital financeiro, do controle favorável das taxas de câmbio etc. Tudo para que a valorização do capital aconteça sem passar pela esfera da produção e circulação de mercadorias.
Ora, para o desespero de Keynes, se estivesse vivo, sua célebre recomendação de decretar a eutanásia do rentista foi implodida pelo neoliberalismo mundo afora desde o final dos anos 1970. E, quando olhamos para as políticas em curso no Brasil, em plena pandemia, tem-se a falsa sensação de que o Estado está agindo no sentido keynesiano, ao introduzir por doses homeopáticas políticas fiscais e monetárias expansionistas.
A política de transferência de renda do auxílio emergencial servirá apenas para não deixar à míngua uma parcela dos trabalhadores (considerando que ela seja de fato executada), mas incapaz de fazer retomar o crescimento da economia pelo aumento do consumo, pois agora, mais do que nunca, o desemprego e o subemprego crescerão galopantes. Um segundo ponto é que a política monetária de juros baixos, de redução do depósito compulsório dos bancos comerciais e de compra de títulos privados pelo Banco Central (a contraparte do sistema financeiro na referida PEC do “orçamento de guerra”) servirá apenas para preservar – se muito – ou minimizar a perda de capital financeiro. O aumento substancial da taxa de câmbio já expõe a fuga de capitais do país. Portanto, nesta via não haverá redirecionamento de capital privado da esfera financeira para a esfera produtiva.
Some-se ao conjunto a Medida Provisória nº 936, ratificada pelo Supremo Tribunal Federal, que permite redução de jornada em 25%, 50% ou 70%, com um corte proporcional no salário, por até três meses, ou a suspensão do contrato de trabalho por até dois meses. Em qualquer dos casos, prevê-se o pagamento ao trabalhador pelo governo da diferença baseada nas regras do seguro-desemprego – leia-se, o valor recebido pelo trabalhador será menor que o salário original.
Portanto, estamos diante de um pseudokeynesianismo. Não há qualquer compromisso com a promoção do pleno emprego ou da proteção da renda para o consumo, com o incentivo a investimentos produtivos privados ou com a ação direta do governo na economia mediante investimentos públicos.
Não nos enganemos! A agenda neoliberal continua firme e forte no Governo Federal, no Congresso Nacional e, pasmem, no Supremo Tribunal Federal.
¹Doutor em Economia da Indústria e da Tecnologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor do Programa de Pós-Graduação em Administração da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR).
Como citar:
TORRES, Ricardo Lobato. A agenda neoliberal avança em plena pandemia. Nuevo Blog, 08 maio 2020. Disponível em: https://nuevoblog.com/2020/05/08/agenda-neoliberal-avanca-em-plena-pandemia/. Acesso em: ??
Excelente professor Ricardo!
Aparentemente as ações realmente nos confundem como se fossem ideias Keynesianas. Obrigado pela explanação!
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