A geografia dos miseráveis

Carlos Alberto Debiasi¹

As grandes jornadas literárias me são caras e delas me satisfaço com gosto e não sem esforço: terminei esses dias o grande clássico Os Miseráveis, de Victor Hugo. Uma leitura não necessariamente de quarentena nem que tampouco levou quarenta dias; mais me parece que foram quarenta anos pra percorrer as 1956 páginas do périplo de Jean Valjean nessa edição lindíssima da finada Cosac Naify. Tempo longo, mas de valor.

Além de uma trama que sopra ares de aventura, sobra espaço para Victor Hugo sondar os séculos XVIII e XIX e suas personalidades, redigir tratados sobre a derrota de Napoleão em Waterloo, fazer uma defesa apaixonada das gírias nas ruas e na literatura, entre tantos outros assuntos. A escritura longa e laboriosa custou mais de década ao autor. Chego a ter pena – não dele – mas do tradutor: foram necessárias milhares de notas para referenciar todas as inflexões presentes no texto.

Mas talvez o que mais chame a atenção não é necessariamente a parte romance burguesa da narrativa mas sim o jogo de luz e sombra sobre o pulsar das cidades, seus ritmos, rostos, espaços. Há muita engenhosidade na pintura: em muitos pontos ele nos leva pela mão em um passeio na imprecisa geometria da Paris passada. Nos aponta: veja, essa rua ali existia mas agora o leitor não mais a encontra; acolá uma coluna esconde a bala que pipocou dos levantes das trincheiras; virar por essa ponte perto do rio nos fará ver tal e tal comércio. Junto à geografia citadina, o autor tem predileção em revelar também os tipos que habitam esses espaços e, ainda que julgue os ambientes burgueses como belos e os pobres como lúgubres, chama a atenção justamente para a figura do Miserável, o pária que habita as beiradas da sociedade. Inconsciente da sua situação, esses seres tentam sobreviver os dias que passam; não sabem na maior parte do tempo da exploração imposta pela elite nobre e burguesa. Muitos deles se comprazem em naufragar na profundidade dos becos e esgotos – Thénardier, o velho estalajadeiro que permeia a narrativa com seus crimes é o maior exemplo disso. Outros são seres livres em sua condição de pobreza; espíritos elevados na visão do autor mas que só podem transcender a miséria pela morte – o menino Gavroche que saltita suicida entre as balas, Epomine e seu amor fadado à incompreensão. Mas, de quando em quando, entre os Miseráveis há espaço para o despertar. Escreve o autor em certa altura: “O miserável, sempre que tem tempo para pensar, torna-se pequeno diante da lei e é mau diante da sociedade; deita-se de bruços, suplica, volta-se para o lado da piedade; vê-se que ele compreende a desgraça em que vive.” O perfil do autor não é abraçar a revolução. Há inclusive um pessimismo por detrás dessas situações – muito proveniente de um mal estar advindo da Revolução Francesa e os desdobramentos políticos que a sucederam. O tom é conciliatório, como era de se esperar. Mas pode haver faíscas de despertar em alguns momentos nas personalidades individuais – instância tão cara aos pensadores iluministas que não podiam faltar a essa obra.

Justamente por isso – e não sem razão – Victor Hugo coloca o extraordinário em seu personagem principal: Jean Valjean é um pária que, em um esforço sobre-humano, dá um nó na imutabilidade do mundo. Suas aventuras são um misto de tragédia com a beleza da honestidade e da simplicidade – ainda que os fantasmas sempre vivam por debaixo de seus múltiplos nomes, endereços, destinos. É um apartado errante, coberto de uma tristeza irreconciliável pelo passado. Todo bom personagem é aquele que vive sob a estrela do conflito, já disseram os storytellers norte-americanos. 

Ao encarnar o Miserável, Jean Valjean veste o perfil do distanciado social, destinado a ser trágica e simbolicamente segregado às galés por toda vida; ser enterrado sob uma pedra sem nome longe dos caminhos. Sua vida está sempre nas encruzilhadas – ou, pior ainda, nos becos sem saída físicos e simbólicos que encontra durante a narrativa. Impossível vê-lo e não lembrar que nossas cidades contemporâneas – netas e bisnetas da Paris do livro – criam o perfil em profusão: pessoas em situação de rua, abandonados, viciados, estrangeiros. Muitos aspectos podem ser levantados aqui, mas me atenho ao central pra não me alongar tanto: Os Miseráveis transcende seu tempo pela beleza da sua literatura. Mas por outro lado, cruza os séculos por conta daquilo que tem de mais terrível – a degradação humana, a impossibilidade de conciliação entre ricos e pobres, o abismo que separa miséria e opulência. Bons livros são aqueles que deixam tristeza ao fechar a capa de trás; mas também são aqueles que seguem conosco na chave de uma leitura que pode se expandir pra toda a vida.

*o texto acima foi originalmente em minha rede social pessoal. Foi encontrado e retirado das tortas ruas digitais pelo professor Francis Kanashiro Meneghetti. Pela gentileza do asilo oferecido no Nuevo Blog, cabe o agradecimento e o apoio de solidariedade entre leitores. 

¹Doutorando em Tecnologia e Sociedade pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR).

Como citar:
DEBIASI, Carlos Alberto. A geografia dos miseráveis. Nuevo Blog, 09 maio 2020. Disponível em: https://nuevoblog.com/2020/05/09/a-geografia-dos-miseraveis/. Acesso em: ??

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