Quem é dono de si?

Ronnie Petter Pereira Zanatta¹

Não é difícil perceber a coerção das convenções sociais nas subjetividades individuais em uma análise das dinâmicas sociais ao longo do tempo. A própria construção da sociedade caracteriza-se como uma forma de enquadrar os indivíduos em determinadas normas e costumes socialmente construídos. Estas construções que determinam as diferentes culturas carregam por gerações modos de dominação da natureza e manutenção de poderes.

Ao discorrer sobre a cultura mercantilizada, Horkheimer e Adorno expõem de maneira transparente os aspectos de manipulação das massas presentes na técnica de produção e difusão da cultura contemporânea. Para esses autores, os filmes, as revistas e o rádio constituem-se um sistema que padronizam a cultura popular. O arrebatamento da produção da cultura em larga escala e com enredos que causam afetos colocam o indivíduo subjugado ao sistema hegemônico. “O que não se diz é que o ambiente em que a técnica adquire tanto poder sobre a sociedade encarna o próprio poder dos economicamente mais fortes sobre a mesma sociedade”. (HORKHEIMER; ADORNO, 2009, p. 5).

Essas análises, do que os autores denominaram indústria cultural, foram realizadas na década de 1940. Mais de setenta anos depois, vivencia-se uma sociedade mergulhada em produções culturais de grandes e poderosas organizações capitalistas, principalmente estadunidenses. A velocidade e a facilidade com que as produções artísticas são difundidas graças a popularização da Internet, possibilitou um domínio cada vez mais globalizado das massas. Um exemplo marcante é a sequência de filmes de super-heróis que movimentam bilhões de dólares ao redor do mundo não só pela bilheteria dos cinemas, mas por todos os produtos adjacentes que levam os indivíduos manipulados pelo sistema cultural a consumir produtos com estampas, brindes ou somente menções aos personagens dos longas. Também, os roteiros que romantizam a obsessão pelo trabalho como única forma de obtenção do sucesso e, consequentemente, da vida feliz (nos padrões de felicidade que a própria indústria impõe).

Para além disso, Horkheimer e Adorno desvendam uma padronização dos estilos de vida presente nos filmes. A cultura industrializada dita as tendências e a qualidade da vida. Todos os aspectos do cotidiano dos atores induzem os espectadores a um tomá-los como referências de sociedades justas, éticas, felizes, modernas, etc. A vida real se baseia na vida cinematográfica. Os estilos musicais, a moda, os automóveis, o mobiliário doméstico, tudo é, na contemporaneidade, reflexo da indústria cultural. O indivíduo é constantemente coagido a adaptar-se aos padrões predeterminados por quem detém o poder midiático. A condição de subordinação é romantizada. As escolhas subjetivas estão condicionadas aos paradigmas culturais industrializados. Esta constatação, não é de forma alguma, determinista. Entretanto, conforme os autores argumentam “quem não se adapta é massacrado pela impotência econômica que se prolonga na impotência espiritual do isolado. Excluído da indústria, é fácil convence-lo de sua insuficiência.” (HORKHEIMER, ADORNO, 2009, p. 16).

Dessa forma, como se atrever a desviar do padrão imposto?

A institucionalização da necessidade anímica inautêntica que se satisfaz somente com os produtos do capitalismo afunda as massas a um nível que definitivamente as impossibilitam de alcançar o patamar da classe hegemônica. A manipulação mental da cultura enlatada condiciona a felicidade plena do indivíduo à manutenção do poder atual. As escolhas não são escolhas; são, antes de tudo, a execução de um script pré-visualizado. As produções novelísticas impõem um ritmo de vida; conduzem o espectador aos padrões de consumo que alimentam os donos do poder, manipulam opiniões ao ponto de demonizar o pensamento contrário ao sistema vigente.

Mas, não é só a indústria cultural que molda as sociedades contemporâneas. Em um livro publicado em 2005, o filósofo e sociólogo alemão Hartmut Rosa oferece uma nova perspectiva de análise para as dinâmicas sociais. Para este autor, os desenvolvimentos sociais e seus problemas atuais podem ser analisados a partir do viés temporal. Não somente de uma maneira cronossociológica, como os estudos são desenvolvidos até então. Mas, numa perspectiva em que a vida é talhada a partir das estruturas temporais construídas socialmente.

A vida, nesse sentido, é fundamentalmente desenvolvida a partir dos padrões temporais estabelecidos. Para Rosa, os “modelos e perspectivas temporais representam, portanto, o ponto paradigmático de mediação entre estrutura e cultura, entre perspectivas do sistema e perspectivas dos atores e ainda de necessidades sistêmicas e expectativas normativas” (ROSA, 2019, p. 26), fornecendo, assim, uma nova forma de entender a formação cultural e estrutural de toda uma época.

É interessante notar que, para esse autor, o tempo se constitui em quatro dimensões: tempo cotidiano, de rotina recorrente, ritmo de trabalho e descanso e seus problemas (Como entregar o trabalho no prazo? Ir ao parque no sábado de manhã ou à tarde? Buscar minha irmã antes ou depois de comprar pão?); tempo de vida, que não considera apenas o tempo cotidiano, mas o tempo de vida como um todo (Que profissão devo seguir? Quantos filhos quero ter? Quanto tempo devo estudar?); tempo de época, período em que o tempo de vida se desenvolve (Na minha época isso era diferente. No meu tempo não tinha telefone celular.); e o tempo sacro, o tempo “atemporal” (A vida eterna. Para Deus, mil anos são como um dia.).

A naturalização dos sistemas capitalistas dificulta essa forma de analisar a formação social. As sociedades são construídas e reconstruídas a partir, também, das estruturas temporais predeterminadas. Os fluxos de trabalho, de consumo, de descanso, de lazer, de ócio, são sempre dependentes da estrutura cronológica estabelecida em uma cultura. Mas, quem ou o que define o tempo do “funcionamento” da sociedade? Não é difícil notar a participação do sistema capitalista neste aspecto. Que horas os estabelecimentos comerciais devem abrir e fechar suas portas? Qual o horário de atendimento nas instituições públicas? Como se organiza o tempo escolar? Quais são os horários de funcionamento do transporte coletivo? Em qual período do ano deve ocorrer as férias escolares? Em qual horário os noticiários devem ser exibidos nas redes de televisão abertas?

Parece que se chega a mais um ponto crítico da analise sociocultural: a manipulação das massas a partir do controle do tempo e da indústria cultural. Sequências de ações cotidianas controladas pelo tempo e a vontade do capitalismo. Se as palavras de Kant, ao responder à pergunta: “Que é o Iluminismo?” em 1784, fossem recontextualizadas para os dias atuais soariam como profecia: “raciocinai tanto quanto quiserdes e sobre o que quiserdes; mas obedecei!” (KANT, 2012, p. 153). Assim como no pós-Iluminismo, parece viverse uma época de restrições impostas, pois ainda não houve uma verdadeira reforma no modo de pensar. O sistema hegemônico controla as novas concepções de sociedade, de moral, de costumes, de tempo, de escolhas, de perspectivas, de felicidade. Esta ontologia da atualidade, a visão analítica do presente, possibilita uma reflexão filosófica que dá sentido à sua inserção na sociedade. O que resta ao indivíduo? Ter clareza de que seu fluxo de vida não lhe pertence totalmente e que, às vezes, tornar-se o desvio padrão desta sociedade onde o monarca absolutista está disfarçado na pseudoliberdade do um sistema cultural/capitalista contemporâneo é uma forma de ressignificar a própria existência.

Referências:

HORKHEIMER, Max; ADORNO, Theodor W. O Iluminismo como mistificação das massas. In: Indústria cultural e sociedade. Seleção de textos: Jorge Mattos Brito de Almeida. 5 ed. São Paulo, Paz e Terra, 2009.

KANT, Immanuel. Resposta à Questão: O que é o esclarecimento?. Cognitio, São Paulo, v. 13, n. 1, p. 145-154, jan./jun.2012.

ROSA, Hartmut. Aceleração: a transformação das estruturas temporais na modernidade. São Paulo, Editora UNESP, 2019.

¹Doutorando em Tecnologia e Sociedade (PPGTE) pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). Atua como Professor de Ciências pela Prefeitura Municipal de Curitiba.

Como citar:
ZANATTA, Ronnie Petter Pereira. Quem é dono de si?. Nuevo Blog, 17 maio 2020. Disponível em: https://nuevoblog.com/2020/05/16/quem-e-dono-de-si/. Acesso em: ??

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