
Fábio Vizeu¹
Durante a Pandemia que está assolando o mundo, a ciência tem se destacado mais uma vez como o campo seguro da verdade. Na era da internet, nunca se prestou tanta atenção a gráficos e opiniões de infectologistas quanto agora. Ficamos ansiosos para receber notícias sobre o resultado promissor dos testes de alguma vacina ou medicamento, estamos atentos às orientações de pesquisadores e profissionais de saúde quanto a melhor forma para se proteger deste vírus mortal.
Ao mesmo tempo que vemos essa valorização do conhecimento científico, testemunhamos também uma verdadeira histeria negacionista. Uma significativa parcela da sociedade nega as estimativas, as projeções epidemiológicas, os estudos feitos em todos os campos da ciência. Vivemos em um cenário tão kafkaniano que questiona-se a verdade sobre as mortes noticiadas. Nega-se a verdade dizendo ser mentira, substituindo a primeira por uma mentira com ar de verdade: a essa arte de enganar nada nova, deram o nome de Fake News, e vivemos em um mundo de incertezas onde nada mais parece ter credibilidade.
Como lidar com tal cenário? Como enfrentar a incerteza sobre o que é verdade e o que é mentira? Por que isso acontece justamente em um momento tão delicado para a humanidade, onde deveríamos nos unir em torno do que é sólido e que já se provou efetivo para lidar com os nossos problemas coletivos? Aqui, vou recorrer ao conhecimento das ciências sociais, que pode explicar esse fenômeno de muitas formas. Apresentarei a perspectiva do filósofo Jürgen Habermas, que sistematizou a Teoria da Ação Comunicativa (TAC), um corpo teórico amplo que, na minha opinião, dá uma boa explicação para essa arena de disputas discursivas na qual vivemos.
Considerando a densidade da proposição teórica deste filósofo alemão, vou procurar seguir uma das premissas da própria TAC, que é a de que se deve comunicar uma ideia da forma mais inteligível possível, mirando sempre o entendimento do interlocutor. Parto, assim, da ideia de que o leitor não é versado em filosofia e ciências sociais. Por isso, vou procurar apresentar os pontos da TAC de maneira simples, mesmo sob pena de ser criticado por outros estudiosos mais eruditos.
O nome da TAC já dá uma primeira pista sobre a sua principal premissa. O ser humano é um ser comunicativo. E isso não quer dizer somente que somos seres que falam por meio de linguagem verbal (e não-verbal); somos seres que interagem com o mundo através de palavras. Ou seja, o mundo e as coisas se apresentam para nós como fatos, evidências e verdades por meio de palavras. Como disse o estudioso Xavier Herrero, a nossa própria subjetividade é definida comunicativamente, já que pensamos em objetos através de palavras. Nós até mesmo conversamos conosco mesmo, com o objetivo de tornar mais claro a ideia que queremos entender. É por isso que Habermas sugere que a racionalidade humana se manifesta socialmente através da comunicação entre as pessoas (racionalidade comunicativa).
Isso quer dizer que consideramos crível algo que é comunicado a nós (seja por meio de um texto, uma fala, uma notícia, etc.) que se sustenta por argumentos que são previamente considerados como válidos por nós. Ou seja, a comunicação é um processo de interação humana baseada em argumentos válidos para o interlocutor. Tudo que acessamos por meio de linguagem verbal somente terá status de verdade se os argumentos explícitos ou implícitos já sejam considerados válidos por nós. Isso é chamado por Habermas de pretensão de validez do ato de fala. É assim que um religioso não consegue oferecer um argumento crível para um ateu baseado na ideia da existência de Deus ou outro fundamento de sua religião, já que a divindade e os dogmas religiosos são uma verdade para o religioso mas não o são para o seu interlocutor. Por outro lado, quando algo que é apresentado ao religioso e que é fundamentado em alguma de suas máximas religiosas, isso passa a atuar positivamente para o seu convencimento, pois se trata de um argumento crível para ele.
Assim sendo, de acordo com a TAC, a verdade é algo que se sustenta por meio de argumentos que são válidos pelos membros de uma comunidade cultural/linguística. Como a nossa teia de verdades é muitas vezes contraditória, a verdade construída discursivamente pode ter muitas facetas. Ou seja, dentre as múltiplas possibilidades que a linguagem verbal me proporciona, para me fazer convincente, eu não preciso apresentar em uma conversa o argumento que me é válido – ou seja, aquele ponto que me convenceu sobre aquilo que desejo falar para convencer o meu interlocutor; para ser mais efetivo, eu posso apresentar o argumento que eu sei que irá melhor convencer meu interlocutor, o argumento que eu sei que ele dá mais valor, que tornará mais efetivo o meu ato de fala como um ato de influência e persuasão. Isso acontece nas entrevistas de emprego. O entrevistado não fala o que ele de fato pensa ou faz quando questionado pelo recrutador; ele fala o que acredita ser mais adequado para convencer o entrevistador que ele é o candidato certo para o emprego. Por exemplo, se o candidato ao emprego é questionado se está disposto a viajar pelo trabalho, mesmo que não esteja, é comum que ele responda que sim, porque está empenhado em conseguir a vaga. Se obter êxito, depois ele vê como faz.
É assim que, para a TAC, a mentira se tornou sistemática em nossa sociedade. Somos uma sociedade instrumental e utilitarista, onde colocamos o êxito de nossos projetos acima da nossa percepção de entendimento mútuo. Em nome de nosso sucesso profissional, financeiro, afetivo, etc., mentimos, omitimos, distorcemos e somos cínicos em relação aos nossos sentimentos. Também manipulamos a retórica e a sintaxe (estrutura formal da linguagem verbal), comprometendo a inteligibilidade do que dizemos, para manipular os outros em nome de nosso êxito.
O nome dado por Habermas a essa manipulação discursiva comum a nosso tempo é a comunicação sistematicamente distorcida. Ela é sistemática porque é estimulada pelas instituições da era Moderna, especialmente pelo sistema político e econômico. É assim que vemos distorção comunicativa naquilo que é dito pelo Estado, pela a imprensa, pelo sistema jurídico e pelas empresas. Isso porque essas instituições são contaminadas pelos interesses instrumentais de seus dirigentes e outros agentes.
Mas qual seria a saída para este cenário, de acordo com a TAC?
Em um mundo de Fake News – ou seja, a distorção comunicativa incrementada com a sofisticação da tecnologia digital – a saída dada pela TAC é o engajamento político nos espaços de fala, buscando fortalecer, por um lado, a comunicação livre de manipulação e, por outro, tornando evidente a distorção comunicativa. Para isso, é preciso que reconheçamos o ponto de vista do outro. Temos que aprender a usar a linguagem de nosso interlocutor, não para manipular a comunicação, mas para tornar mais precisa a busca por argumentos que sejam válidos para ambos – falante e ouvinte. Assim sendo, se eu sou ateu, mas acredito que é legitimo o direto à crença religiosa – bem como o direto de não ter religião – devo interagir comunicativamente a partir deste argumento, respeitando o outro que não compartilha essa minha ‘verdade’, mas que compartilha tantas outras. Ai eu atinjo o que Habermas chama de comunicação orientada para o entendimento intersubjetivo, ou seja, quando a escolha dos argumentos em um diálogo é dada a partir das referências compartilhadas por ambos os interlocutores, de maneira honesta e autêntica. Em outras palavras, eu busco convencer – e aceito ser convencido – por pontos que são legítimos para mim e para meu interlocutor.
Quando nos relacionamos orientados para uma comunicação intersubjetiva, não significa que iremos sempre chegar a um acordo. Significa, apenas, que iremos nos esforçar para reconhecer aspectos da verdade do outro como compatíveis a nossa própria verdade. E esse é o primeiro passo para que consigamos superar as disputas insanas das posições contrárias, sempre baseadas em mentiras e manipulações discursivas. Se há alguma possibilidade de um mundo multicultural baseado em uma coletividade integrada, de acordo com a TAC, esse mundo é o do verdadeiro diálogo. Que busquemos as soluções para nossos conflitos reconhecendo a possibilidade da interlocução, combatendo a mentira com argumentos válidos para aqueles que julgamos estarem sendo manipulados pelos oportunistas. Somente assim seguiremos juntos para um mundo melhor e mais humano.
¹Doutor em Administração de Empresas pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Professor na Universidade Positivo, onde também atua como Coordenador Adjunto do programa de Mestrado e Doutorado em Administração.
Como citar:
VIZEU, Fabio. Pandemia, ação comunicativa, verdade e Fake News. Nuevo Blog, 21 maio 2020. Disponível em: https://nuevoblog.com/2020/05/21/pandemia-acao-comunicativa-verdade-e-fake-news/. Acesso em: ??
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