
Patrícia da Silva Leite¹
A reflexão que proponho nesta pensata surge a partir de uma discussão em aula sobre a diferença entre o Estruturalismo e a Teoria Crítica; e como várias áreas da sociedade podem ser relacionadas com a Indústria Cultural. Nesse sentido, busco neste texto debater sobre as características do Estruturalismo que podem ser percebidas na condição produtivista da nossa sociedade, que é apontada particularmente por Horkheimer e Adorno[i] em seu texto sobre a Indústria Cultural. No caso desta pensata, essas relações são apresentadas por meio de exemplos relacionados ao entretenimento e à ciência.
Considerando este contexto, baseio este texto principalmente no trabalho de Durkheim[ii] , para abordar o Estruturalismo; e no trabalho de Horkheimer e Adorno[iii], para abordar as características da Indústria Cultural. Por restringir-me a esses trabalhos, não discuto neste texto sobre outras perspectivas teóricas que podem ser consideradas contemporâneas ou que possam apresentar outros desdobramentos para as questões aqui tratadas.
Ressalto ainda que compreendo que o Estruturalismo e a Teoria Crítica são epistemologias diferentes e que apresentam perspectivas teóricas distintas. Entretanto, considerando a proposta de uma pensata, julguei oportuno realizar o exercício de propor a relação entre diferentes perspectivas para discutir um mesmo objeto e traçar semelhanças entre elas neste processo.
Em seu texto “O que é um fato social?”, Durkheim[iv] indica que fatos sociais são os objetos de estudo dos sociólogos e caracteriza esses objetos como forças e elementos exteriores às pessoas. Dentre os exemplos apresentados estão a família, o idioma, a educação, o direito, o desemprego, o crime, o suicídio, entre outros. Por meio desses exemplos, o autor indica que, ainda que uma pessoa que cumpra seus deveres e os considere de acordo com seus sentimentos, essas ações não representam a vontade e o objetivo da pessoa. Isso pois essas ações foram transmitidas às pessoas pela sua educação, de modo que elas existem antes do seu nascimento, ou seja, existem fora da pessoa.
Essa percepção de Durkheim[v] sobre a presença de estruturas pré-existentes às pessoas ou comportamentos esperados por elas em sociedade, pode ser relacionado a questão apresentada por Horkheimer e Adorno[vi] quando estes indicam que na “cultura contemporânea a tudo confere um ar de semelhança”[vii]. Deste modo, todos os componentes culturais da sociedade constituem um único sistema que age com o objetivo de homogeneizar os artefatos culturais produzidos, o que pode interferir também na maneira como as pessoas agem.
Nesse sentido, a questão da Indústria Cultural pode ser considerada como um sistema que estabelece ideias, modelos e padrões para a produção de artefatos, enquanto que o Estruturalismo indica a estrutura político-social da sociedade. Deste modo, essas duas perspectivas poderiam ser percebidas como complementares em situações como aquelas relacionadas ao consumo e à produção de artefatos para a sociedade.
Considerar que a o sistema da Indústria Cultural motiva a homogeneização dos artefatos que são disponibilizados para a sociedade, pode auxiliar na compreensão de que esses artefatos estão incorporados em uma estrutura que demanda a sua existência. Essa relação também pode evidenciar a relação intrínseca entre tecnologia e sociedade, apontada por outros teóricos e pensadores, que indicam que os artefatos refletem e refratam a sociedade, assim como a sociedade também é alterada a partir da tecnologia.
Além da questão da estrutura homogeneizada dos artefatos criados, é possível abordar a questão da quantidade de artefatos criados ou do seu modelo de produção. Nesse sentido, a Indústria Cultural e as áreas inseridas em seu sistema apresentam características de produção para atender diversas classes ou hierarquias sociais específicas, como argumentam Horkheimer e Adorno[viii]. Essa estrutura de produção atua como meio para organizar e classificar as pessoas, de modo que tenta prescrever o que cada pessoa pode ou deve consumir, ao mesmo tempo que estabelece padrões do que essas pessoas podem ou devem ter acesso. E a partir da determinação do que pertence a cada público e a relação entre tecnologia e sociedade, é possível considerar que esses artefatos também podem intervir na estrutura sócio-política da sociedade, ao tentar prescrever comportamentos e ações específicas das pessoas.
A hierarquização de artefatos produzidos pode ser identificado em ações como a de serviços de streaming como a Netflix, que em algumas regiões pode ser relacionado à classes sócio-econômicas B e C, enquanto que serviços como a HBO Go, pode ser considerada relacionado à públicos de classe sócio-econômica A. Além disso, a quantidade de produções dessas empresas, pode ser relacionado à quantidade e diversidade de público que utiliza esses serviços, ainda que diferentes produções tenham estruturas semelhantes como quantidade de episódios, tema, características de atores e atrizes, entre outras. Essa combinação de características dos serviços de streaming denota a estrutura de suas produções, que como apresentado por Horkheimer e Adorno[ix], indica esquemas de produção semelhantes, mesmo que os produtos aparentem ser diferentes.
Caso a reflexão sobre os serviços de streaming seja realizada no âmbito acadêmico, a divisão de público e hierarquização pode ser representada pela classificação de periódicos, congressos e seminários que apresentam características distintas e podem demandar sistemas de produção diferenciados. Além disso, a existência de plataformas científicas pagas ou com acessos restritos, denotam a diferenciação e hierarquização do público que pode utilizar tais serviços. Em relação ao produto final apresentado em cada um dessas plataformas de divulgação de trabalhos científicos, é possível identificar características semelhantes, como formato dos trabalhos aceitos ou estrutura dos textos, denotando a homogeneização da ciência como parte do sistema da Indústria Cultural.
Ainda em relação as características do Estruturalismo apresentada por Durkheim[x], é importante destacar que o autor indica que as ações envolvendo a conduta ou o pensamento das pessoas na sociedade, são permeados por forças imperativas e coercitivas que impõe à pessoas maneiras de agir pré-estabelecidas ou desejadas. Com isso, o sistema e a estrutura reagem contra as pessoas que tentam reagir a essas regras ou violá-las, de modo a impedir suas ações ou anulá-la a ponto de reestabelecer o que é considerado a norma pelo autor. Essa questão também pode ser associada ao trabalho de Horkheimer e Adorno[xi] quando estes indicam que aqueles que tentam resistir à Indústria Cultural só conseguem sobreviver integrando este sistema. Deste modo, assim como apresentado por Durkheim[xii], a estrutura do sistema da Indústria Cultural age como uma força coercitiva que tenta prevenir a ação desviante ou individual
A aparente quantidade de opções de serviços, tanto na questão dos serviços de streaming quanto da plataformas de divulgação de trabalhos científicos também podem ser relacionada à questões apresentadas por Durkheim (2007), Horkheimer e Adorno (2002). A conexão com o trabalho de Durkheim[xiii] pode ser identificada na questão das forças coercitivas que podem impor às pessoas o acesso e o uso de serviços específicos, tais como os mencionados anteriormente como Netflix e HBO Go. Essa força pode estar ligada à contextos sociais, econômicos, políticos ou culturais, mas ainda assim pode apresentar prescrições de comportamentos e ações às pessoas.
Ainda em relação às opções de serviços disponíveis para as pessoas, Horkheimer e Adorno[xiv] indicam que essa quantidade revela apena uma aparência de concorrência e de possibilidades de escolha por parte das pessoas. Entretanto, o significados criados pelas produções de diferentes plataformas ainda apresenta semelhanças, o que os autores consideram como o triunfo da Indústria Cultural, como esclarecem os autores. Isso pois ao consumir produtos diferentes, com significados semelhantes, o sistema de racionalização da sociedade é mantido e as pessoas continuam replicando as ações e os comportamentos dos produtos que consomem.
As forças coercitivas e a estrutura do sistema da Indústria Cultural também podem ser considerados na questão do volume de produções para o entretenimento e para a ciência. Nesse sentido, conforme apresentado anteriormente, serviços de streaming precisam aumentar seu catálogo para manter seus clientes interessados, ao mesmo tempo que os mantém atados àqueles produtos. De maneira semelhante, a demanda por produções científicas publicadas em veículos como os apresentados anteriormente é resultante de forças coercitivas do Estado ou de estruturas sócio-políticas, que agem para que programas de pesquisa aumentem suas ações e publicações para evitar que seus benefícios sejam cortados. Exemplo disso é a atual situação de programas de pós-graduação com notas abaixo de 4, que tiveram seus recursos reduzidos, como bolsas de estudo[xv]. Neste caso, o volume de produções científicas pode estar relacionada às notas dos programas, o que sugere uma força coercitiva para o aumento da produção científica.
Considerando os exemplos apresentados anteriormente e as características da Indústria Cultural e do Estruturalismo, é possível compreender o pessimismo apresentado por Horkheimer e Adorno[xvi] em sua discussão sobre a Indústria Cultural, particularmente quando as forças coercitivas e a aparente falta de opções para ações diferentes são evidenciadas. Nesse sentido, a relação entre as duas teorias pode ser utilizada para identificar as forças que estão envolvidas na estrutura da Indústria Cultural e potenciais meios para burlar esse sistema.
Nas áreas do entretenimento e da ciência, ações que buscam se desviar do sistema coercitivo da Indústria Cultural podem ser identificados em sistemas abertos e gratuitos de disponibilização de produções audiovisuais e acadêmicas, tais como o Libreflix[xvii], revistas de acesso e publicação abertas ou eventos acadêmicos online, que propiciam maior flexibilização de acesso para as pessoas. Outro tipo de ação que pode ser considerada um desvio à Industria Cultural é a pirataria de produções audiovisuais e acadêmicas.
Entretanto, é importante considerar que, ainda que essas ações indiquem uma contrariedade ao sistema coercitivo da Indústria Cultural, elas ainda replicam suas estruturas como por exemplo o formato das publicações disponibilizadas ou representam ações ilegais em busca do consumo de produtos da Indústria Cultural. Nesse sentido, cabe a discussão sobre os limites e as possibilidades da real fuga ao sistema e à estrutura da Indústria Cultural.
A utilização do Estruturalismo como meio para abordar características da Indústria Cultural, relacionada a Teoria Crítica, pode ser considerado um exercício interessante para realizar reflexões sobre a realidade da nossa sociedade e conjecturar soluções para os problemas existentes. Por se tratar de duas epistemologias distintas, a combinação de suas propostas teóricas devem ser realizada com cautela e transparência, particularmente para prevenir conclusões equivocadas.
A discussão realizada brevemente nesta pensata propicia a reflexão sobre o sistema em que estamos inseridos, que envolve nossas estruturas de produção e consumo de artefatos da Indústria Cultural. Esse sistema produtivista envolve forças que coíbem a sociedade a desenvolver artefatos de maneiras e em quantidades tais que podem ignorar as diferenças, características e objetivos de cada pessoa, fazendo com que elas atuem como pequenos componentes de um sistema que não permite ações contrárias.
É importante ressaltar que a reflexão apresentada neste trabalho origina-se nos textos utilizados na disciplina estudada, de modo que não foram consideradas outras perspectivas teóricas que propõe abordagens diferentes para discutir a questão da Industria Cultural e a relação de produção de artefatos pela sociedade. Uma teoria que apresenta outra perspectiva é a Teoria Critica da Tecnologia, de Andrew Feenberg, estudante de Herbert Marcuse e uma das gerações contemporâneas da Teoria Crítica.
A proposta do teórico envolve a concepção de uma nova racionalidade para a sociedade moderna, baseada principalmente na democratização da tecnologia. Essa proposta é fundamentada a partir de exemplos de ações de grupos que agem para terem suas demandas atendidas, propiciando mudanças na tecnologia e na sociedade. Isso sugere novas maneiras de considerar a produção de artefatos na nossa sociedade, tema da reflexão deste trabalho. Neste caso, a partir de outras perspectivas teóricas, poderíamos considerar os potenciais desdobramentos de mudanças na estrutura da sociedade.
Para concluir essa breve reflexão, direi que ao considerar as características da Indústria Cultural e do Estruturalismo nos exemplos apresentados, é possível compreender o pessimismo de Horkheimer e Adorno[xviii] e a aparente inexistência de perspectivas que alterem essa realidade. Entretanto, a identificação dessas forças e estruturas pode contribuir na elaboração e na concepção de alternativas para a sociedade, particularmente aquelas que considerem as individualidades e os contextos das pessoas.
Referências:
[i] HORKHEIMER, M.; ADORNO, T. W. O iluminismo como mistificação das massas. In: ALMEIDA, J. M. B. (Ed.). Indústria cultural e sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
[ii] DURKHEIM, E. As regras do método sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
[iii] Idem item i
[iv] Idem item ii
[v] Idem item ii
[vi] Idem item i
[vii] HORKHEIMER, M.; ADORNO, T. W. O iluminismo como mistificação das massas. In: ALMEIDA, J. M. B. (Ed.). Indústria cultural e sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2002, p. 5.
[viii] HORKHEIMER, M.; ADORNO, T. W. O iluminismo como mistificação das massas. In: ALMEIDA, J. M. B. (Ed.). Indústria cultural e sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
[ix] Idem item viii
[x] Idem item ii
[xi] Idem item viii
[xii] Idem item ii
[xiii] Idem item ii
[xiv] Idem item viii
[xv] REIS, V. Nota sobre a persistência do corte das bolsas de pós-graduação. ABRASCO, 18 set. 2019. Disponível em: https://www.abrasco.org.br/site/noticias/institucional/nota-sobre-a-persistencia-do-corte-das-bolsas-de-pos-graduacao-dos-programas-notas-3-e-4/42702/. Acesso em 11 set. 2019.
CORTE em bolsas da Capes vale também para programas de pós-graduação com alta nota de avaliação. G1, 10 set. 2019. Disponível em: https://g1.globo.com/educacao/noticia/2019/09/10/capes-vai-congelar-bolsas-de-pesquisa-ate-em-cursos-com-alto-nivel-de-avaliacao.ghtml. Acesso em 11 set. 2019.
[xvi] Idem item i
[xvii] Ver em https://libreflix.org/
[xviii] HORKHEIMER, M.; ADORNO, T. W. O iluminismo como mistificação das massas. In: ALMEIDA, J. M. B. (Ed.). Indústria cultural e sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
¹Doutoranda em Tecnologia e Sociedade pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR).
Como citar:
LEITE, Patrícia da Silva. O Sistema Produtivista da Indústria Cultural de Horkheimer e Adorno em relação às Forças Coercitivas do Estruturalismo de Durkheim . Nuevo Blog, 23 maio 2020. Disponível em: https://nuevoblog.com/2020/05/23/o-sistema-produtivista-da-industria-cultural-de-horkheimer-e-adorno-em-relacao-as-forcas-coercitivas-do-estruturalismo-de-durkheim/. Acesso em: ??
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