
Rafaela Mota Ardigó¹
Faz pouco mais de quinze anos agora. O livro, escondido entre peças baratas e comerciais de uma biblioteca itinerante era “Memórias de minhas putas tristes”. Reconheço que o abracei naquele momento mais por curiosidade, – assumo que o autor era, para mim, um ilustre desconhecido apesar se sua vasta fama. À época, recordo ter ficado consternada com um enredo que, em minha ética juvenil, era desprezível por seus incomensuráveis signos misóginos e pedófilos.
Ainda assim, apesar do irremediável incomodo, achei tamanha beleza poética na obra que nunca mais consegui abandonar o autor. Não tinha ainda a plena consciência de que toda ética é restringida pelos limites de seu tempo histórico, menos ainda de que certos gênios tem o dom da denúncia da ortodoxia de seu tempo sem afrontar o status quo. Genialidade que se expande quando estes nos presenteiam com suas mais profundas angústias, nos relegando certas verdades universais sobre o que é ser humano.
Esta ambiguidade de sentimentos que me provocou este livro, jamais me abandonou em nenhuma obra de Gabriel Garcia Márquez.. Acredito que esta seja uma das grandes lições que aprendi com o autor, a começar por “Memórias de minhas putas tristes”. A arte, assim como a vida, exige tempo de maturação para ser compreendida e, ainda assim, talvez nunca o seja por pela diversidade de subjetividades que repousa sobre a terra. Porém, isso não importa. Sendo a poesia abstração que transcende o tempo a arte nos torna herdeiros do benefício da eternidade. O patrimônio é de todos nós e será apreendido cognitivamente, ou não, em seu devido tempo. Mas tampouco isso importa. Creio que o que importa, de fato, são os sentimentos que a arte nos desperta e, mais ainda, o quanto eles são capazes de expandir nossa consciência e nos tornar seres humanos minimamente menos desconhecedores do tamanho de nossa ignorância.
Em “Memórias de minhas putas tristes” se encontra implícita uma constante que reside em todas as obras de Gabriel Garcia Márquez e que, talvez, tenha sido a razão de meu apego primeiro: A solidão. Um dos seus tipos vale ressaltar, há muitas solidões diferentes em Garcia Márquez. O fato é que nunca me saiu da memória o narrador prestes a completar 91 anos, ao sair do quarto da menina Delgaldina ainda intacta, escrevendo com batom vermelho em seu espelho:
“Minha menina, estamos sozinhos no mundo”.
Foi importante para o meu eu de 18 anos refletir sobre isso. Fato curioso esse o medo de ficarmos sozinhos, no sentido de falta de companhia na vida, esconde a fatídica verdade de que estaremos sempre sozinhos em nossas subjetividades. Apreendi dessas reflexões que deveria ter o dever moral de amar-me durante os anos, pois sem isso estar rodeada de pessoas pouco significaria. Não me entendam mal, tenho a sorte de estar rodeada de pessoas especiais que iluminam os meus dias, porém este projeto eterno e sempre inacabado de me reconciliar cotidianamente com minha solidão tem sido fundamental para o meu amor próprio e o meu bem viver.
Por falar em Delgaldina e projetos inacabados de uma vida toda, esta personagem, que resta calada na maior parte do livro, me ensinou a dura lição de tentar não julgar tão rápido o próximo. Como não ficar tocada com a menina que trabalha incansavelmente como pregadora de botões para ajudar a sustentar os irmãos e, aos 14 anos, ainda virgem, é exposta a prostituição para realizar o sonho de presente de aniversário de um velho homem despido de amor?
Claro que esta tentativa de retardar julgamentos até se comprovarem os fatos é dolorida, é cansativa, faz sofrer, nos tira do eixo, nos tira do nosso pedestal de pretensa perfeição e bondade moral caridosa a qual somos expostos por nossa tradição católico-cristã. Tentar não julgar é um treino constante que exige muita perspectiva de nosso dever social em um mundo tão perturbado. Estamos tão imersos em nossas construções sociais advindas das instituições sociais que nos cercam, – como a escola, a igreja, a família,- que não nos damos conta que somos uma ilha nada autentica. A busca por alguma autenticidade, creio eu, reside na tentativa de julgar através do olhar do outro e, a partir daí, fazermos o nosso melhor em termos práticos, considerando as nossas limitações e interesses no assunto.
Então que está reflexão colocada em palavras lembrou-me de um fato da juventude. Minha família estava sempre se equilibrando na corda bamba das finanças. Porém, no início de minha juventude, passamos por uma situação financeira particularmente difícil e, como todas as famílias, tivemos que fazer escolhas que não convém serem colocadas aqui. O fato é que não tínhamos acesso a computador e internet em casa. Meus professores e colegas da faculdade não compreendiam o porquê, assim como meus colegas de trabalho não compreendiam as razões de eu não frequentar o cinema quando criança e, assim, neste contexto tão empático eu não tinha muitas pessoas com quem dividir minhas angústias pessoais, imagine as literárias.
Na ocasião eu frequentava muitas lan-houses. As redes sociais como conhecemos hoje eram ainda embrionárias no Brasil e predominavam as perspectivas conservadoras. Sobre o livro, quase recém-lançado naquela época, encontrei apenas criticas de colunistas em algumas revistas e blogs. De forma geral, elas não eram exatamente positivas. Acredito que pelas razões que explicitei no início deste texto. Em uma delas lembro claramente que diziam que, a despeito da notável obra do Nobel de Literatura Gabriel Garcia Márquez, em seu último livro ele demonstrava que estava ficando senil. Ora, ora, ora…
Minhas primeiras palavras foram para Rosa Cabarcas: Compro a casa inteira, com o armazém e o pomar. Ela me disse: Façamos uma aposta de velhos, quem sobreviver fica com tudo que é do outro, assinado no tabelião. Não, porque se eu morrer, tudo vai para ela. Dá na mesma, disse Rosa Cabarcas, eu tomo conta da menina e depois deixo tudo para ela, o seu e o meu; não tenho mais ninguém neste mundo. Você acha que ela vai concordar? (…) Essa pobre criatura está zonza de amor por você, disse Rosa Cabarcas. Saí radiante para a rua e pela primeira vez me reconheci no horizonte remoto do meu primeiro século (…) Era enfim ávida real, com meu coração a salvo, e condenado a morrer de bom amor na agonia feliz de qualquer dia depois dos meus cem anos
Nunca deixei de me perguntar em como poderia um homem, que dedica ao amor tamanho poder de salvação e transformação de uma alma, ajudando outra alma, estar senil. Espero algum dia chegar a este nível de senilidade. De repente agora, terminando este texto, me vem à mente o belo discurso de quando Gabo foi agraciado com o Nobel de Literatura. Sempre me questionei sobre qual seria a solução para este “nó da nossa solidão” latino americana, de que ele tanto falava. Talvez a resposta se encontre em sua mente senil.
¹Doutoranda em Tecnologia e Sociedade pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR).
Como citar:
ARDIGÓ, Rafaela Mota. Menina, estamos sozinhos no mundo. Nuevo Blog, 30 maio 2020. Disponível em: https://nuevoblog.com/2020/05/30/menina-estamos-sozinhos-no-mundo/. Acesso em: ??
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