
Luiz Gustavo Lara¹
Atualmente, entre muitos dos desafios de nossa realidade, está o de conviver em sociedade em tempos de convicções inabaláveis, muitas vezes catalisadas pela dinâmica operacional das redes sociais que oferecem mais e mais informações sob um ponto de vista que as pessoas tendem a concordar. Tais informações, às vezes, excertos de publicações científicas, são tomadas como não problematizáveis – uma postura não condizente com a dos próprios pesquisadores e suas comunidades. Esses conteúdos, metodologicamente disseminados e sem compromisso com tradições do pensamento, frequentemente articulam termos próprios de correntes teóricas e fortalecem (pré)concepções truncadas das comunidades científicas para as quais foram elaboradas, agravando os efeitos da distância entre interpretações e tradições de pensamento. Podemos perceber que é cada vez mais comum nos deparar com opiniões extremistas, sustentadas publicamente e que parecem estar truncadas da realidade compartilhada pela comunidade linguística de onde os termos articulados se originaram. Desse modo, de maneira aparentemente crescente, temos de lidar com sujeitos portadores da Verdade: grupos, interlocutores e, por vezes, nós mesmos.
Nesse sentido, a Hermenêutica filosófica de Hans-George Gadamer é provocativa e nos convida a (re)conhecer a incompletude das interpretações e a virtude do diálogo a partir da fusão de horizontes interpretativos na busca de consenso, cujo efeito nos leva a ao entendimento de que “ser” no mundo é “ser” compreendendo, num gesto contínuo de interpretação, de redução simbólica sempre insuficiente para expressar a Verdade toda. Os encontros hermenêuticos com o mundo e seus ineditismos movem o sujeito a expandir seu horizonte interpretativo e compreender interrogando a tradição – e não a refutando senão pela identificação de contradições a partir de seus próprios constructos. E nessa perspectiva, como se lida com a Verdade, âncora de significações tão valorizada por nossa sociedade?
A busca pela Verdade na experiência humana é um dos temas mais antigos da história do pensamento. Até mesmo o termo Hermenêutica faz referência a Hermes, divindade grega responsável pela interpretação e transmissão das mensagens dos deuses do Olimpo aos mortais. Nesse sentido, temos um termo cuja origem nos remete a um sujeito que é capaz de portar a Verdade sobre uma mensagem, sobre um texto, sobre o sentido estruturado numa ordem linguística. Já na era cristã, a hermenêutica consagrou-se como sendo o campo que estudava interpretação correta sobre os textos bíblicos, de forma metodologicamente orientada, uma condição para o acesso à Verdade, que estaria positivada naqueles escritos. Essa crença na possibilidade da Verdade universal, de origem na tradição judaico cristã, ainda nos é bastante familiar e até já nos habituamos com pronunciamentos quase cotidianos que citam o versículo do Evangelho de João “E conhecereis a verdade e ela vos libertará”. O intento de se chegar à Verdade também é um elemento importante e que participa da inauguração do período que nominamos Modernidade: Descartes, em seu discurso do método, buscava a boa condução da razão para obtenção da Verdade nas ciências de seu tempo.
Por meio do cogito, da dúvida, elaborado na linguagem da tradição que lhe constituiu como sujeito, Descartes chegou uma certeza, sentença que a duvidação sistemática não era capaz de abalar: penso, logo sou! Note-se que, ao seu modo, Descartes foi capaz de duvidar racionalmente de tudo, menos dos significados das palavras que estruturavam seu cogito. Como sabemos desde os desdobramentos da virada linguística nas ciências do espírito, a linguagem não possui significações fixas e nem se configura como uma ferramenta do pensamento, pois parece não haver compreensão alheia à articulação a partir de um sistema simbólico e, desse modo, o pensamento é linguagem. Nesse sentido, Gadamer nos coloca a refletir criticamente sobre a Verdade obtida proceduralmente no que diz respeito sobre os elementos pelos quais se interessam as ciências do espírito, ou ciências humanas, como a conhecemos hoje.
Para o autor, o Método, enquanto um procedural técnico-racional que levaria a uma Verdade universal, deveria ser apreciado na instância da linguagem. Isso porque, não havendo metalinguagem para lastrear o sentido unívoco das articulações simbólicas, senão apenas linguagem que por si se referencia, inclusive as sentenças sob as quais um método é expresso, ao pensar estar sendo detentor da Verdade sobre a experiência humana estaria o sujeito, sob inspiração iluminista, sustentando uma Verdade autofundada pela Razão Moderna – uma condição análoga à solução encontrada pelo Barão de Munchausen para sair da areia movediça, onde caiu com seu cavalo: teria se suspendido da areia puxando a si por seus próprios cabelos.
A questão da Verdade é tão cara à Gadamer, que sua obra magna foi intitulada Verdade e Método. Essa obra, para Paul Ricoeur, seria melhor expressa sob o título: Verdade ou Método. Isso porque seria problemático acreditar que um método técnico-racional, importado das ciências da natureza para as ciências do espírito, fosse capaz de, em um gesto interpretativo, libertar o sujeito de suas pré-concepções, de anular a sua subjetividade e seu o horizonte hermenêutico. Por isso, sempre que nos deparamos com sujeitos proferindo a Verdade e com ela fazendo referências à experiência simbólica – característica da vida social –, é prudente construir as conexões desse saber com tradições de pensamento, uma aposta para que se percebam como pertencentes a uma comunidade linguística. Essa parece ser uma condição essencial para se deslocar os sujeitos das bolhas de opinião formadas em grupos e nas redes sociais, que sob inabalável convicção, utilizam recortes de realidade racionalmente estruturadas para sustentar posições nem sempre razoáveis como sendo a Verdade universal.
Sob o argumento de Gadamer, ao nos percebermos como pertencentes a uma comunidade pela qual nos constituímos sujeitos racionais, constituída sob tradições de pensamento, remontando a historicidade dos recursos simbólicos pelos quais elaboramos a compreensão de ser no mundo, reconectamo-nos com a Tradição, que fora refutada pelo iluminismo com seu critério autofundado para construção da Verdade, cujos efeitos acompanhamos em nossa sociedade. Sob métodos-técnicos racionais de construção da Verdade que foram operados muitos dos episódios mais trágicos do século XX, entre eles os campos de concentração em diversos países, a destruição em massa com bombas atômicas, a destruição de riquezas culturais e a predação de recursos naturais – na maioria dos casos, justificadas racionalmente para maximização de ganhos econômicos. Também sob o método autofundado de obtenção de Verdade da modernidade que, pela racionalidade técnica, foram operadas políticas governamentais de eugenia em diversos países – inclusive no Brasil.
O aporte reflexivo gadameriano nos leva a compreender que toda interpretação deve ser considerada incompleta e em movimento. Ao desarticular a Verdade enquanto uma possibilidade baseada na razão técnica para compreensão de elementos fundantes da experiência humana, do “ser no mundo”, a hermenêutica filosófica também destitui os sujeitos de Verdade de seus postos de poder e os convida a dialogar com a tradição, reconhecendo a autoridade da diacronia do pensamento humano e também os intransponíveis preconceitos, pré-concepções necessárias para o gesto de interpretar e que apenas são nocivas quando não compreendidas como inexoráveis e incompletas. Tal postura é uma boa aposta para a contemporaneidade brasileira onde as pré-concepções, muitas vezes tem sido são tomadas como sendo suficientes para compreensão. Portanto, a proposta da hermenêutica filosófica gadameriana, de reconciliação com a tradição, do reconhecimento da autoridade da diacronia do pensamento e da intransponível limitação de nossas preconcepções, nos convida a compreender a realidade na instância da linguagem, sempre em movimento. Parece ser uma aposta para compreendermos e lidarmos com a condição de estarmos condenados a interpretar sem nunca esgotar os sentidos da experiência de ser no mundo. Com uma postura aberta para a dialogia, talvez tenhamos algum ganho na desarticulação de pensamentos herméticos e nocivos à vida em sociedade.
¹Doutor em Administração (PPGA/UP),Professor na Positivo Business School e colaborador no Programa de Pós-Graduação em Administração da Universidade Positivo.
Como citar:
LARA, Luiz Gustavo. Sobre a atualidade da Hermenêutica filosófica de Hans-George Gadamer em tempos de extremismos. Nuevo Blog, 08 Jun. 2020. Disponível em: https://nuevoblog.com/2020/06/08/sobre-a-atualidade-da-hermeneutica-filosofica-de-hans-george-gadamer-em-tempos-de-extremismos/. Acesso em: ??
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