
Giselle Quaesner¹
Criadas por Maurício de Souza, as histórias em quadrinhos da Turma da Mônica são popularmente conhecidas por seus/suas personagens de características singulares. Dentre eles, o Cebolinha, uma carismática figura conhecida por seus cinco fios de cabelo, sua dislalia (condição da fala na qual a criança troca a letra R pela L em seus diálogos), por organizar estratégias para tentar obter a liderança entre as crianças da rua em que mora e por tentar “roubar” o coelho de pelúcia pertencente à sua rival, Mônica. A comicidade dessa literatura infantil se centra na determinação do personagem em elaborar planos que considera infalíveis, mas que sempre falham.
Embora encaremos com humor e consideremos as atitudes dos/as personagens, inocentes e imaturas, podemos encontrar a mesma essência em nossas ações e exigências enquanto adultos/as. Um exemplo disso está nos meios de comunicação. Recentemente, a apresentadora Fátima Bernardes confundiu o nome do seu atual namorado Túlio Gadêlha, com o de seu ex-marido William Bonner. O caso gerou repercussão nacional em redes sociais, considerando-se um grande desacerto por parte da jornalista, posto que poderia ferir o ego de seu novo companheiro.
Há inúmeros casos como o de Fátima Bernardes circulando pelos meios digitais, bem como em nossos contatos cotidianos, o que expõe nossa imaturidade e tendência a buscar a infalibilidade tão almejada pelo personagem citado. Essa procura, associada a fatores ideológicos e sociais, acabou moldando os meios de comunicação em um padrão artificial de exposição de seus conteúdos, bem como os paradigmas de comportamento por trás das câmeras, quando pensamos no veículo que mais atinge a grande massa. Os telejornais nos mostram que o conteúdo se legitima, em nossa configuração atual, pela imagem e postura dos/as âncoras, bem como sua capacidade de esconder emoções, o que ainda é visto por muitos/as como a expressão da seriedade e credibilidade, embora alguns/mas de nós saibamos dos interesses políticos que estruturam esses meios de comunicação.
A almejada ausência de emoções justifica-se pela suposta neutralidade exigida para a transmissão de informações, de modo que o/a transmissor/a não pode expressar seus valores ao/à telespectador/a. Mas isso é realmente possível? Mesmo que haja um cuidado com a forma de apresentação, sempre haverá um direcionamento político por parte da organização/instituição portadora das notícias a serem veiculadas. Semelhante proposta se discute, no Brasil, para a área do ensino, na qual se sugere que o/a professor/a transmita conhecimentos sem expressão ideológica, o que, em essência, significa submissão aos interesses dos/as detentores/as do poder e expressão de suas crenças.
A busca pela neutralidade é uma ilusão. Enquanto estivermos cerceados/as por configurações hierárquicas, por mais que se realize treinamentos, se possua um texto formulado e nenhuma expressividade para transmitir informações e conhecimentos, o próprio conteúdo dos discursos revelará a representatividade. Entretanto, é necessária a reflexão e questionamento do mundo à nossa volta para percebermos esses direcionamentos, o que se conquista por meio de uma educação voltada para o estímulo do senso crítico.
O discernimento nos permite enxergar as possibilidades e verdades ocultas. Também nos possibilita perceber que sempre há um caminho melhor, mais justo, solidário e equitativo, de forma que não precisamos aceitar as injustiças à nossa volta, simplesmente porque “já estava assim quando chegamos”. Também nos faz amadurecer e utilizar a sabedoria em diversas situações, visto que, antes do julgamento, há uma reflexão sobre o melhor caminho a ser trilhado e os motivos pelos quais determinada situação se desenrola.
Uma pessoa que desenvolve o senso crítico não compreende o mundo de forma vulgarizada, cujas ideias e opiniões se formulam por experiências vivenciadas em um determinado contexto e são transmitidas de geração a geração, muitas vezes de forma impositiva. Entretanto, a grande dificuldade em disseminar a visão crítica é o conformismo da maioria, associado ao estímulo daqueles/as que se aproveitam da submissão para criarem inimigos ilusórios e um alto preço pela suposta eliminação do mal e das angústias coletivas.
O pensamento analítico é libertador, no sentido de permitir façamos nossas próprias ponderações e não dependamos das reflexões de outrem para darmos significado aos eventos cotidianos. Todavia, enxergar os problemas sociais nem sempre é fácil, posto que a maioria se acomoda às limitações do senso comum e, uma vez que exista um consentimento coletivo, por mais incorreto que seja, formula-se uma verdade, muitas vezes incontestável, mesmo quando se apresenta dados que comprovem o equívoco. Essa “verdade” irrefutável reforça nossa tendência buscar uma ilusória infalibilidade, afinal é mais fácil e cômodo deixar tudo como está do que questionar o mundo ao nosso redor e perceber quão imperfeitos/as somos.
Como alternativa para evitarem pensar em seus defeitos, muitos/as buscam atribuir ao outro a responsabilidade dos próprios erros, contudo se aceitássemos nossas imperfeições e falhas como um potencial a ser explorado, poderíamos construir uma sociedade mais madura e meios de comunicação com padrões de apresentação mais naturais. Entretanto, somente o estímulo do senso crítico tem a capacidade de transformação que a sociedade necessita. De outro modo, estaremos sempre criando planos infalíveis para derrotarmos nossas rivais (as verdades reveladas somente a partir da reflexão sobre o que já está posto), mas o desfecho já sabemos, com auxílio do fascinante personagem dos quadrinhos.
¹Doutoranda em Tecnologia e Sociedade pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). Bolsista da Capes.
Como citar:
QUAESNER, Giselle. A sociedade dos infalíveis. Nuevo Blog, 09 Jun. 2020. Disponível em: https://nuevoblog.com/2020/06/09/a-sociedade-dos-infaliveis/. Acesso em: ??
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