Racismo, Estudos Organizacionais e o medo branco da rebeldia do desejo*

Fonte: Isabel Praxedes (@isabel.praxedes) – Adaptado

Josiane Silva de Oliveira¹

Os movimentos mais recentes de revoltas contra o racismo em relação a população negra que temos presenciado, e participado, nesse ano de 2020, viralizados nas redes com o uso da hashtag “Black Lives Matter” / “Vidas Negras Importam”, tem possibilitado refletir, conforme destaca Grada Kilomba[i], que não é com “o sujeito negro que estamos lidando, mas com as fantasias brancas sobre o que a negritude deveria ser. Fantasias que não nos representam, mas, sim, o imaginário branco”. Com efeito, quando falamos sobre racismo é preciso entender que esse não é um problema do negro. O problema é o racismo e falar sobre isso é falar, também, sobre a construção de imaginários brancos sobre nós.

Sendo uma mulher negra no Brasil, professora e pesquisadora da área de Estudos Organizacionais, as pessoas poderiam pensar que falar sobre racismo é algo comum em minha atividade profissional. Afinal, além de ser um “tema de negro”, historicamente esse é um campo da Administração considerado crítico e com muitas discussões sobre temáticas nomeadas como marginalizadas. E, talvez, esse seja um dos grandes desafios que o racismo nos coloca nessa área: a ideia de que esse imaginário branco sobre o negro pode falar sobre nós e não sobre o próprio branco[ii]. A questão é: como ter respostas para questionamentos que não se escuta? Se até mesmo quem me disse “negra”, me disse sob o poder que teve de me nomear como um corpo, político e social, racializado sem mesmo me ouvir.

Esse medo branco de ouvir[iii] e de refletir sobre si em relação a temática racial pode ser observado nas publicações da área de Estudos Organizacionais sobre racismo. É muito comum que pesquisadoras brancas e pesquisadores brancos, quando desejam falar sobre raça e racismo, coloquem negras e negros como objeto desse desejo e não as relações raciais[iv]. Isso fica evidente quando lemos trabalhos e observamos a negritude como “problema central” nas discussões, enquanto a branquitude é silenciada. Se estamos falando sobre configuração de relações sociais pautadas em racismo, por que diferentes sujeitos que constituem essas relações não são problematizados nessas discussões?

Maria Aparecida Bento (2016[v]) afirma que discutir racismo é colocar em discussão rompimentos de privilégios. E o medo da perda desses privilégios, da responsabilização pelas desigualdades raciais, resulta, por muitas vezes, no silenciamento branco em relação ao racismo, afirma a referida autora. Dois exemplos são destacados por Bento[vi] sobre esse processo. O primeiro é que o branqueamento é repetidamente considerado um problema de negras e negros sob os aspectos do descontentamento e do desconforto em relação a sua condição racial, mas não se considera “a patologia social do branco”, nos termos apresentados por Alberto Guerreiro Ramos (1957[vii]), em se colocar como norma e padrão de humanidade. Ora, quando falamos em racismo nos Estudos Organizacionais no Brasil não seriam as normas e as normalizações atuais o problema? Então, por que não escrutinamos essas normas e normalizações em termos raciais?

Outro ponto destacado por Bento[viii] é que o legado da escravidão para a população branca no Brasil não é um assunto que o país, e a área de Estudos Organizacionais, tem discutido, pois essa população tem uma herança econômica, política e ideológica extremamente positiva resultado da apropriação de trabalho escravizado por quase quatro séculos. Bento[ix] destaca que muitas pessoas brancas progressistas ao se colocarem em uma posição de combate as opressões raciais “silenciam e mantêm seu grupo protegido das avaliações e análises”. Não seria esse um bom momento para romper com os pactos de silenciamentos e omissões raciais entre e no próprio grupo de Estudos Organizacionais no Brasil?

Foto: Julio César de Almeida (@juliocesaarrrr)

A questão é que o racismo é estruturante em nossa sociedade justamente por mobilizar mecanismos econômicos, políticos e ideológicos coletivamente de forma a configurar, manter e reproduzir relações raciais desiguais[x]. Portanto, ao falar sobre racismo estamos destacando que independentemente de consciências individuais, ele nos organiza socialmente. Ou seja, normaliza comportamentos e configura tecnologias de poder[xi].

Talvez, um dos aprendizados que o movimento “Black Lives Matter”/“Vidas Negras Importam” pode trazer para romper com mecanismos de reprodução do racismo estrutural na área de Estudos Organizacionais no Brasil é parar de destituir pessoas negras de “lugares de fala” nessa área que não seja raça e racismo e começar a destituir medos brancos de ouvir, para além de suas “fantasias brancas sobre o que a negritude deveria ser”[xii]  falando sobre si mesmas. Pessoas brancas refletindo e se tornando objeto de desejo nas discussões sobre racismo. Olhar para o seu próprio legado acadêmico compreendendo em que medida ser branca ou branco foi um dos principais condicionantes para ocupar lugares de privilégios raciais que hoje se ocupa. E, ir além desse reconhecimento, rompendo com estes pactos de silenciamentos e omissões ante “a rebeldia de seu objeto de desejo”[xiii].

Ao ler esse texto, como mulher negra, espero, mais do que ter despertado seus medos e fantasias em relação ao racismo e os Estudos Organizacionais no Brasil, ter potencializado alguns ensinamentos de Audre Lorde (2019[xiv]). Espero que tenha conseguido pulsar seu desejo de ouvir e transformar as relações raciais nos Estudos Organizacionais, afinal nada melhor do que “o poder que vem de compartilhar intensamente qualquer busca com outra pessoa”[xv]: Vidas negras importam! E nossos desejos também! Axé!

*O termo rebeldia do desejo é utilizado pelo professor Lourenço da Conceição Cardoso em sua tese de doutorado sobre branquitude: CARDOSO, Lourenço. O branco ante a rebeldia do desejo: um estudo sobre a branquitude no Brasil. 2014. 290f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais, Universidade Estadual Paulista, Araraquara, 2014.

Referências:

[i] KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019, p. 38.

[ii] KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

[iii] AZEVEDO, Cecília Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco: o negro no imaginário das elites século XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

[iv] CARDOSO, Lourenço. O branco ante a rebeldia do desejo: um estudo sobre a branquitude no Brasil. 2014. 290f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais, Universidade Estadual Paulista, Araraquara, 2014.

[v] BENTO, Maria Aparecida S.. Branqueamento e branquitude no Brasil. In: CARONE, I. BENTO, M. A. S. Psicologia social do racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2016.

[vi] Idem item v.

[vii] GUERREIRO RAMOS, Alberto. Patologia social do ‘branco’ brasileiro”. In: ______. Introdução crítica à sociologia brasileira. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1957.

[viii] Idem item v.

[ix] Idem item v, p. 362.

[x] ALMEIDA, Silvio. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.

[xi] Idem item x.

[xii] Idem item i.

[xiii] Idem item iv, p. 1.

[xiv] LORDE, Audre. Irmã outsider. Tradução de Stephanie Borges. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.

[xv] Idem item xiv, p. 70.

¹Doutora em Administração pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (EA/UFRGS) com estágio doutoral realizado na Université du Québec/Canadá. Professora do Programa de Pós-Graduação em Administração na Universidade Estadual de Maringá (UEM) e na Universidade Federal de Goiás (UFG).

Como citar:
OLIVEIRA, Josiane Silva de. Racismo, Estudos Organizacionais e o medo branco da rebeldia do desejo. Nuevo Blog, 17 Jun. 2020. Disponível em: https://nuevoblog.com/2020/06/17/racismo-estudos-organizacionais-e-o-medo-branco-da-rebeldia-do-desejo/. Acesso em: ??

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