
Ana Paula Myszczuk¹
O desenvolvimento da Ciência no século XX resultou em muitos avanços técnicos e variados questionamentos. A mesma civilização que se prepara para colonizar outros planetas convive com mazelas aparentemente insolúveis, como a falta de civilidade e de respeito à dignidade humana. Esses dois males se agigantam nos cenários trazidos pela pandemia do COVID-19 e muitos se perguntam sobre qual mundo deixaremos para as futuras gerações. Ainda há espaço para que “desenvolvimento” seja sinônimo de empoderamento do ser humano? Como romper com esse círculo de desumanização que parece envolver as sociedades atuais e se perceber que o plano econômico só será eficaz se possibilitar uma vida digna para humanidade?
Para tentar sair do “buraco civilizatório” do atual momento histórico, a Bioética se apresenta como aliada de primeira hora. É baliza ética para nortear as relações humanas, com uma análise transdisciplinar, complexa e plural. Transdisciplinar porque analisa o complexo problema da vida por meio de uma pluralidade de perspectivas. Complexa, porque serve de ponte para a construção de pensamento que admita concepções complementares e antagônicas. Pluralista, porque adota dever de respeito do ser humano para com outro e de todos com a humanidade, assumindo postura íntegra frente ao outro, à sociedade e à natureza.
Entretanto, por mais que a Bioética possa ser adotada para dar validade àquilo que possa ser considerado adequado naquele lugar e momento histórico, é apenas um caminho dentro vários outros que podem ser tomados. Não se torna obrigatório e pode ser simplesmente ignorado pela sociedade e pelo “Mercado”. É por isso que, nesse embate de forças, deve ser incluído um segundo aliado: as leis sociopolíticas, obrigatórias e coercitivas.
Tudo estaria resolvido se as leis sociopolíticas, desafortunadamente, não apresentassem uma grave contradição: o sistema legal é baseado na lei escrita. Portanto, enquanto a lei se congela no tempo, o costume cresce e diversifica-se. É aí que surge outro grande problema. A construção da atual forma de proteção jurídica se originou nos séculos XVII e XVIII, como consequência do Estado Moderno. Legalidade e a segurança jurídica foram os principais instrumentos usados para garantir o poder e a dominação.
Assim, o sistema jurídico, na sua formulação tradicional, tem pouco a contribuir para dar conta das relações da sociedade contemporânea globalizada. Novos direitos, novos atores sociais e novas demandas reclamam outras formas de equacionamento e proteção de bens considerados juridicamente relevantes, agora em caráter universal. Mas qual caminho adotar para uma atualização eficiente do sistema jurídico ao século XXI? Como encontrar soluções para que a lei se renove e se adapte à Bioética da atualidade? Na resposta a esse problema é que o Direito encontra o caminho da Bioética e do Biodireito.
Do mesmo modo como a Ética avançou e permitiu o desenvolvimento da Bioética, o Direito avançou e produziu uma nova forma de análise, o Biodireito. O principal alicerce dessa nova forma de análise jurídica advém do princípio da hierarquia das leis escritas; a interpretação das regras jurídicas deva ser feita de acordo com a Constituição Federal. Essa premissa tradicional embasa a concepção teórica inovadora da “Bioconstituição” ou “Biodireito Constitucional”, fundada na tutela da vida, identidade, integridade e saúde do ser humano atual e futuro.
Essa forma de interpretação parte do principal valor e base comum para análise dos conflitos sociais presente na Constituição Federal de 1988: o respeito pela dignidade humana. Para uma interpretação bioconstitucionalizada é considerado humanamente digno apenas o que atenda simultaneamente aos critérios de: solidariedade, tolerância e sustentabilidade. Essas três perspectivas, em conjunto, tornam o conceito de dignidade humana algo materialmente realizável e não apenas um argumento de autoridade, vazio e abstrato das interpretações jurídicas tradicionais. Além disso, dão dimensão material à dignidade humana, unindo o ser com o dever ser e o poder fazer.
Pensemos na solidariedade com toda a humanidade, nas suas presentes e futuras gerações. A possibilidade de convivência depende de uma mudança global. É preciso superar a perspectiva ética baseada no sujeito isolado e abstrato e adotar-se uma atitude baseada na responsabilidade universal e solidária face aos desafios do século XXI. Exercitemos a tolerância com o diferente, respeitando a diversidade cultural e o uso de posições democráticas para libertação do ser humano de qualquer forma de opressão. O sujeito abstrato do sistema jurídico moderno precisa se tornar um sujeito ético e moral, consciente de si e dos outros, que seja dotado de vontade racional, se reconheça como ser responsável e, assim, possa se autodeterminar. Coloquemos em prática a sustentabilidade – nas vertentes jurídica, social, ambiental e econômico-financeira -, para enfrentar os problemas ecológicos que nos fizeram ter de repensar a qualidade do desenvolvimento atual.
Enfim…. voltando as questões iniciais: ainda há espaço para que “desenvolvimento” seja sinônimo de empoderamento do ser humano? Como romper com esse círculo de desumanização que parece envolver as sociedades atuais e se perceba que o plano econômico só será eficaz se possibilitar uma vida digna para humanidade?
Novos tempos se apresentaram e, para solucionar os questionamentos, as características inovadoras de transdisciplinaridade, complexidade e pluralismo divididas entre Bioética e Biodireito são essenciais. A partir dessa sinergia, é possível dar mais um passo para que o desenvolvimento seja sinônimo de empoderamento do ser humano: o estabelecimento de um núcleo Bioconstitucional ligado à biotecnociência e suas relações com o ser humano. Esse núcleo será imprescindível na construção de um estatuto jurídico do(a) “cidadão(a) bioético(a)”.
Esse(a) “cidadão(ã) bioético(a)” seria aquele(a) que respeita à si mesmo(a), aos outros(as) cidadãos(ã) e seres vivos numa perspectiva de responsabilidade universal; além de buscar a convivência de forma solidária com as presentes e futuras gerações, é tolerante com o diferente, respeitando a diversidade cultural e o uso de posições democráticas para libertação do ser humano de qualquer forma de opressão e age sempre de forma sustentável para enfrentar os problemas ecológicos de modo consciente, se reconhecendo como ser responsável e autodeterminado.
Dias melhores virão!
¹Doutora em Direito Econômico e Socioambiental pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná, com estágio doutoral na Universidade do Deusto e Universidade do Pais Basco. Professora na Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) em cursos de graduação e no Programa de Pós-Graduação em Planejamento e Governança Pública (PGP) e da Universidade Aberta do Brasil (UAB).
Como citar:
MYSZCZUK, Ana Paula. Aproximações e interações: desafios da Bioética e do Biodireito na atualidade.. In: Nuevo Blog, 23 Jun. 2020. Disponível em: https://nuevoblog.com/2020/06/23/aproximacoes-e-interacoes-desafios-da-bioetica-e-do-biodireito-na-atualidade/. Acesso em: ??
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