O capitalismo de vigilância e os estudos das organizações: Estudando Shoshana Zuboff

Por Fernando Ressetti Pinheiro Marques Vianna

“Quanto maior a certeza, menor a liberdade.” Essa frase foi dita pela Professora Shoshana Zuboff, e ilustra exatamente aquilo ela encontrou em suas pesquisas sobre o surveillance capitalism. Sua percepção a respeito dos caminhos que levaram as tecnologias digitais, especialmente aquelas que permitiam diferentes formas de customização, de ferramentas empoderadoras de clientes e usuários, para verdadeiras máquinas de desigualdade e exploração, estabelece uma nova possibilidade dentro dos estudos das organizações. Seu interesse pelo cotidiano e a maneira como as novas tecnologias são aplicadas na transformação deste cotidiano norteiam suas pesquisas mais recentes. 

Nascida na Nova Inglaterra em 1951, Zuboff é filha de um farmacêutico e de uma dona de casa, e tem em seu avô a primeira pessoa relacionada com tecnologia, já que o mesmo trabalhava com o desenvolvimento de sistemas voltados para máquinas de venda automática. Bacharel em filosofia pela Universidade de Chicago e PhD em psicologia social pela Universidade de Harvard, iniciou seus estudos sobre os dilemas da tecnologia da informação no ambiente de trabalho em 1978. Na época, Zuboff fazia seu PhD e se especializava em história do trabalho, especialmente a história do trabalho na Revolução Industrial. Em 1981 tornou-se Professora de Administração da Universidade de Harvard, e se tornou professora emérita Charles Edward Wilson, uma categoria de docentes que homenageia o líder da General Eletrics, além de ser uma das primeiras professoras livre docente da Universidade de Harvard.    

Seu principal trabalho na época foi a obra “In the Age of Smart Machine: The future of work and power[i], lançado no ano de 1988, após dez anos de pesquisas. Entre os fatores que contribuíram para o desenvolvimento desse trabalho, Zuboff relata as experiências que vivenciava como consultora organizacional, especialmente em áreas de mudança organizacional e avaliação de inovações no ambiente de trabalho. Inovações que, por meio de pesquisas de caráter qualitativo, Zuboff passou a perceber tanto pelas lentes dos próprios indivíduos submetidos a elas, quanto pelas lentes dos indivíduos que os submetiam. Com pesquisas unidas a consultorias em bancos e jornais, Zuboff deixava de se interessar, exclusivamente, pela história do trabalho, e passava a se dedicar aos aspectos da mudança em si, enquanto elas ocorriam. 

O insight da autora sobre as mudanças que a tecnologia estava causando ao trabalho no início da inserção dos sistemas computacionais, é relatado no livro “In the age of Smart…”, quando a autora afirma que uma exposição de peças de ferro, semelhantes a ferramentas industriais dos séculos 18 e 19, a fizeram perceber que ela presenciava uma transformação dos processos das organizações semelhante à Revolução Industrial. A autora acreditava, naquele momento, que vivia uma oportunidade de explorar “a carne e o sangue” por trás dos conceitos da mudança oriundas da inserção dos computadores nos ambientes de trabalho. Nos dez anos entre suas pesquisas e a publicação do aclamado livro, Zuboff pôde se sensibilizar com o comportamento dos gestores, tanto nos papeis passivos de participantes da adoção tecnológica, quanto no papel de proponentes destas tecnologias.

Naquele momento, Zuboff percebia que os gestores, por meio das Tecnologias, buscavam detalhes do conhecimento e do comportamento de seus funcionários, como se a própria possibilidade de transformar a máquina em um compêndio de conhecimentos humanos fosse seu fim. A autora analisava com rara minucia as formas de poder que emergiam das relações mediadas por computadores, as formas com que a autoridade se manifestava nas organizações. Utilizando conhecimentos oriundos de seus estudos sobre a História da produção, da técnica e das relações sociais, com autores como Daniel Bell, Daniel Rodgers, Daniel Nelson e Max Webber, Zuboff explora as maneiras como a técnica exerce poder sobre aqueles que a usam e sobre aqueles que a implementam.

Com tais relações entre as tecnologias e os indivíduos impactados por elas em mente, nos deparamos com uma nova realidade que é abordada pela autora, a chamada era do capitalismo de vigilância (Age of Surveillance Capitalism). Acreditando que Zuboff é uma autora que busca analisar as mudanças enquanto elas estão ocorrendo, seu último livro nos apresenta um mundo que ainda estamos conhecendo, e sobre o qual ainda estamos desenvolvendo as bases para uma abordagem crítica, trata-se do livro The Age of Surveillance Capitalism: The fight for a human future at the new frontier power[ii].

Neste livro a autora parte de uma realidade de inovações que prometiam garantir o empoderamento dos indivíduos e consumidores, que seriam privilegiados na era digital por sistemas de customização em massa e prestação de serviços online. Contudo, ao abordar a temática do capitalismo de vigilância, a autora nos apresenta um modelo de processo produtivo digitalizado que busca expropriar os dados dos usuários com o objetivo de prever aquilo que faremos e desejaremos. A autora afirma que “a questão mais importante do capitalismo de vigilância não se encontra no fato de serem automatizadas as informações sobre nós, mas de nós sermos automatizados.”    

A importância de seus recentes estudos fez com que seu livro fosse uma das biografias sugeridas na chamada do periódico da área de Estudos Organizacionais, Organization, que abordou o lado obscuro da digitalização. Além disso, a partir de seus estudos e desta teoria a respeito do capitalismo de vigilância, outros autores passaram a observar a temática, que hoje conta com diferentes termos cunhados a partir de Zuboff, como o capitalismo de plataforma[iii], o colonialismo de dados[iv] e o capitalismo de Big Data[v].

Devido às características comumente encontradas nos processos capitalistas, como a instabilidade e suas crises internas, o capitalismo de vigilância se apresenta como uma importante teoria a ser explorada nos Estudos Organizacionais. Tal importância se deve a, aparentemente, uma alteração no processo de desenvolvimento tecnológico, em que as tecnologias deixam de ser construídas a partir de demandas da sociedade, e passam a ser construídas de acordo com o interesse das organizações, que hoje direcionam o comportamento de consumo. Além disso, a cada melhoria em processos e novas tecnologias desenvolvidas pelas organizações da era digital, sua justificativa é o interesse dos usuários. Contudo, tal justificativa há de ser questionada, já que as organizações digitalizadas lucram como nunca visto, ao passo que as desigualdades econômicas, sociais, raciais e outras, assim como a violência direcionada a grupos não hegemônicos, se ampliam na mesma medida e, comprovadamente, com o auxílio destes processos de vigilância.


[i] ZUBOFF, S. In the age of the smart machine: the future of work and power. New York: Basic, 1988.

[ii] ZUBOFF, S. The age of surveillance capitalism: The fight for a human future at the new frontier of power. Profile Books, 2019.    

[iii] SRNICEK, N. Platform capitalism. John Wiley & Sons, 2017.

[iv] COULDRY, N.; MEJIAS, U. A. The costs of connection: How data is colonizing human life and appropriating it for capitalism. Stanford University Press, 2019.

[v] CHANDLER, D.; FUCHS, C. Digital objects, digital subjects: Interdisciplinary perspectives on capitalism, labour and politics in the age of big data. University of Westminster Press, 2019.


Fernando Ressetti Pinheiro Marques Vianna é Doutorando em Administração pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).

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