
Egon Bianchini Calderari¹
O que o Cinema pode nos ensinar? Esta pergunta, aparentemente simples, exige que façamos grandes reflexões a respeito da arte como um instrumento pedagógico. Poderíamos responder com um simples “ora, o cinema é capaz de nos ensinar praticamente tudo. Depende apenas da escolha do que reproduzir na tela”. Mas uma resposta como esta, que é ao mesmo tempo genérica e desprovida de sentido, seria apenas um reflexo não formulado conscientemente, em que atribuiríamos ao objeto reproduzido, seja ele uma trajetória de vida, um drama amoroso ou um fato histórico, a responsabilidade pelo processo de ensino-aprendizagem. Assim, acredito que, antes de elaborar uma resposta mais adequada ao questionamento proposto, se faz necessário pensar na dialética presente no processo de produção/reprodução cinematográfico.
Dos pequenos experimentalismos e registros documentais criados na periferia dos países pobres às grandes produções de Hollywood, os resultados criados e apropriados pela denominada “sétima arte” podem ser os mais diversos. Visto como uma simples mercadoria ao serviço das grandes produtoras ou então como uma manifestação artística legítima, o cinema é capaz de desempenhar no meio sociotécnico opiniões controversas. Atraídos pela discussão, alguns autores já se debruçaram sobre a áurea que envolve a popularizada arte, em busca de maior compreensão a respeito dos seus efeitos no meio social, dentre os quais podem ser destacados Theodor Adorno, Max Horkheimer e Walter Benjamin, associados com a Escola de Frankfurt.
Adorno e Horkheimer (1982) concebem o cinema como um veículo de alienação da classe trabalhadora, sendo um dos braços da famigerada indústria cultural, que inclui os outros meios de comunicação de massa (como a televisão e o rádio). O cinema é, dentro desta perspectiva, responsável pela produção e reprodução de bens simbólicos direcionados à promoção da uniformização do pensar. Segundo os autores, as audições cinematográficas teriam como objetivo somente construir e reforçar uma estética totalitária, de modo a orientar as massas tão somente ao consumo no interior do sistema capitalista.
A concepção de cinema elaborada por Benjamin (1985) opunha-se, em partes, a construção materializada por Adorno e Horkheimer. Para Benjamin, o cinema inaugurou uma nova relação entre as multidões e a arte, ao reproduzir o caráter coletivo do homem moderno, e por isso deve ser pensado dialeticamente. Se por um lado o cinema é capaz de proporcionar apenas uma vivência parcial da realidade e que, sendo assim, não permite a reprodução da experiência caracterizada pela apreensão da realidade sensível em si pelos sujeitos, por outro pode ser concebido como um instrumento construído por e para o coletivo, que é capaz de permear as relações sociais daqueles que compõem a base social. Apenas nesta segunda função, o cinema poderia ser pensado como um veículo que permite a tomada do autoconhecimento das massas, desde que esteja a serviço dos interesses da coletividade.
Seguindo o caminho lógico percorrido por Benjamin, pode-se afirmar que é então a intencionalidade na construção e reprodução das obras cinematográficas, que determina as possibilidades de alienação ou de esclarecimento. Não é possível, no entanto, generalizar, no sentido de imaginar que todas as obras do cinema possuem potencial educativo e/ou emancipatório. Excluem-se dessa possibilidade os filmes superficiais, que reforçam a existência da aparente realidade utilitária e binária e que, na falta de maior densidade em seus enredos, exaurem o expectador emocionalmente, ao utilizar como recurso as rápidas transições de cenas e as mudanças bruscas no ritmo da história. Após a audição, o mais provável é que reste ao espectador uma enorme sensação de ausência, marcada pelo aparente estranhamento de uma exposição desconexa de sua realidade e que, por isso, carece de sentido objetivo. Isso não significa necessariamente desonestidade na direção ou produção dos filmes que podem ser encaixados nestas descrições, mas sim que as intenções dos autores foram orientadas a fins instrumentais, cujo o objetivo é de entregar um simples produto para o consumo coletivo.
Não vejo também como as obras cinematográficas podem ser capazes de contribuir para o esclarecimento se somente forem reproduzidas como um espetáculo visual alheio aos sujeitos, contemplado em culto, sem que sejam capazes de ser incorporadas em suas vivências. A obra ao ser reproduzida deve, ao mesmo tempo, produzir nos espectadores um duplo efeito: o primeiro é o de permitir que se reconheçam como personagens ativos da realidade exposta. Aqui não me refiro somente às prescrições do roteiro, mas à reprodução das relações estabelecidas no período histórico que abarca a produção da obra e a sua apreensão pela audiência; o segundo é o de que as experiências não devem ficar somente restrita aos sujeitos, como espectadores solitários. Para que haja a possibilidade de uma construção consciente (não alienada), as relações estabelecidas entre as personagens e o contexto devem ser reconstruídas por intermédio do processo de socialização. A reelaboração coletiva da obra permitirá confrontar percepções e tensões, manifestas em opiniões que refletem diferentes trajetórias de vida.
Portanto, para que o cinema possa ser pensado como um veículo capaz de contribuir à aprendizagem, é necessário que a obra seja capaz de evidenciar, em uma construção dialética que abarca todo o seu processo de produção/reprodução, as contradições presentes na realidade, sejam elas retratadas em suas camadas mais aparentes ou profundas. Assim, creio tornar-se possível aos sujeitos superar a experiência de mero espectadores para transformarem-se em protagonistas de suas trajetórias particulares e coletivas. Deste modo, o cinema pode ser apresentado como um meio contributivo à extensão dos nossos horizontes abstratos de mundo, ao mesmo tempo em que é capaz de nos permitir maiores reflexões sobre a nossa limitada vivência concreta.
Para que os esforços possam desfrutar de sucesso, é preciso, entretanto, disposição à reflexão e abertura à possibilidade de discussões críticas, o que exige prática. Se faz necessário confrontar o espírito individualista que insiste em ocupar todas as dimensões de nossas vidas, e que busca objetificar e simplificar a complexa e mutável realidade da qual fazemos parte. Acredito, do mesmo modo que Walter Benjamin, que a verdadeira arte se constitui em uma experiência sensível e reveladora, capaz de proporcionar um possível caminho para superação das experiências hegemônicas e totalitárias.
Referências
ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. A Indústria Cultural. In: SILVA, L. (Org.). Teoria da cultura de massa. São Paulo: Paz e Terra, 1982. p.159-204.
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. (Obras Escolhidas, 1).
¹Mestre em Administração pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). Professor da Faculdade de Ciências Sociais e Aplicadas do Paraná.
Como citar:
CALDERARI, Egon Bianchini. O que o Cinema pode nos Ensinar?. In: Nuevo Blog, 27 Jun. 2020. Disponível em: https://nuevoblog.com/2020/06/27/o-que-o-cinema-pode-nos-ensinar/. Acesso em: ??
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