
Diego Matheus de Menezes¹
Gostaria de começar este texto, antes de adentrar nas análises sobre o governo atual, questionando o significado de transparência governamental. Apesar da aparente obviedade, ao almejar responder essa questão, nos deparamos com um amplo espectro de enquadramentos possíveis. Decerto, ao falar de transparência mobiliza-se noções sobre a ampliação do acesso à informação dos gastos, atos e ações públicas. Entretanto, ao enquadrar e articular os elementos relacionados a essas noções, distintas narrativas são construídas a partir dos múltiplos significados do que seria um governo mais transparente. Pode-se, por exemplo, mobilizar a ideia de transparência com maior ou menor ênfase na interdependência desta com a ampliação da participação da sociedade civil nas coisas públicas a partir de mecanismos de controle social. Ou ainda, pensar medidas relacionadas ao liberalismo econômico de restrição de funções estatais, no intuito de enxugar e/ou privatizar a máquina pública, como medidas que limitam ou reforçam a transparência, ao deslocar setores de interesse público do campo de atuação do Estado.
Esse fenômeno ocorre, pois, no campo da política, disputa-se até mesmo os sentidos e significados das noções referentes a questões públicas. Como bem pontua Dagnino, Olvera e Panfichi (2006), um mesmo conceito pode ser mobilizado de distintas formas, dependendo de como ele é reorganizado no interior dos diversos projetos políticos existentes. Assim, um elemento importante para refletir sobre a transparência de um determinado governo é analisar como este mobiliza as noções sobre o assunto. Por isso, é importante nos estudos da área, investigar como a abertura das informações públicas é efetivada e como ela dialoga com o projeto político governamental. Ou seja, torna-se central questionar qual é o sentido da transparência ou da falta dela no contexto e no tempo em questão.
Tendo isso em vista, acredito que um caminho pertinente para as reflexões sobre o governo atual é analisar tanto a performance das instituições relacionadas ao acesso à informação, quanto as narrativas e estratégias do governo para interagir com os efeitos da transparência pública. Longe de almejar encerrar essa discussão, pretendo nas próximas linhas levantar algumas reflexões e percepções preliminares.
Acredito que um elemento importante para compreender a narrativa do governo Bolsonaro é o deslocamento da ideia de transparência como ampliação do acesso a processos e informações relacionadas às decisões públicas, para uma noção de transparência como sinceridade pessoal. O bolsonarismo performa a personalização da transparência a partir dos recursos da tecnologia de mídias sócias, da sua caracterização como “homem comum” e no linguajar sem filtros. Assim, busca-se construir a percepção de que a opção de se comunicar com a população via mídias socais, a constante emissão de opiniões pessoais e as quebras de protocolos, são decorrentes da sinceridade individual do governante. Ao manejar “transparência” como característica individualizada, abre-se espaço exatamente para a falta de transparência como obrigação de governo perante a coisa pública.
Uma das principais características do governo Bolsonaro, exemplifica bem a questão: a hostilidade com as mídias tradicionais e a estratégia de fortalecer a divulgação da atuação governamental em espaços controlados, principalmente em redes socais pessoais. Assim, evita-se questionamentos públicos por parte da imprensa, enquanto fomenta-se a imagem de uma interlocução mais direta com sua base política.
O enfraquecimento de instrumentos de controle não se restringe ao controle nos canais de informação. A relação do governo com o controle social é marcada pela descontinuidade de décadas de fomento a experiências de colegiados federais com a participação da sociedade civil. A extinção de colegiados federais via decreto desativou uma grande número de mecanismos de participação social, com destaque aos conselhos gestores de políticas públicas.
Além disso, fomentar ou flexibilizar o acesso público aos dados governamentais é um importante indicativo da relação dos governos com mecanismos de transparência. Por isso, no primeiro mês de governo, a gestão Bolsonaro já apontava para possível inflexão na transparência governamental ao emitir um decreto alterando à Lei de Acesso à Informação. Assinado (LAI) pelo vice-presidente Hamilton Mourão, o decreto ampliava o rol de agentes públicos com o poder de classificar informações como do mais alto grau de sigilo. É bem verdade que o decreto foi revogado, após pressão pública e críticas emitidas por congressistas, mas a estratégia de mobilizar o sigilo para evitar divulgação de informações desconfortáveis para o governo, consolidou-se ao longo desses 2 anos. Recentemente, o STF suspendeu um novo decreto do governo que visava desobrigar o atendimento a solicitação de dados via a LAI.
Nesse sentido, a nota da CGU que entende como sigilosos os pareceres jurídicos emitidos para orientar a Presidência na avaliação de projetos do Congresso, pode ser um indício de capilaridade em órgãos de fiscalização, da percepção do governo de que é legítimo ampliar as possibilidades de tornar dados e documentos públicos como secretos ou sigilosos.
O embate do governo contra a divulgação de dados inconvenientes não se restringe ao escopo da Lei de Acesso à Informação. Uma ocorrência peculiar no governo Bolsonaro consiste na estratégia de demonstrar desconfiança a dados publicizados por instituições públicas federais que respondem a órgãos governamentais. Quando informações públicas desconfortáveis ao governo são divulgadas, os dados são desacreditados pelo presidente ou por membros do alto escalão. Em 2019, por exemplo, o diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) foi exonerado em decorrência de um embate referente a um levantamento que demonstrou avanço do desmatamento na Amazônia. Ainda em 2019, o governo só liberou a divulgação de um estudo da FIOCRUZ que indicava a inexistência de uma epidemia dos usos de drogas no país, após pressão pública.
A ocorrência mais grave no embate do governo com pesquisas e levantamentos de dados ocorreu na pandemia de Covid-19. Além de modificar o horário da divulgação dos casos confirmados, o Ministério da Saúde decidiu mudar o cálculo do número de vítimas da Covid-19, no intuito de excluir casos confirmados da doença que não fossem registrados no sistema no mesmo dia do falecimento. Tendo em vista a demora no registro em decorrência da necessidade de confirmação dos casos, a medida levaria a subnotificação. Apesar do recuo do Ministério da Saúde, o evento produziu desconfiança em como o ministério trata os dados repassados pelas secretarias estaduais.
O enfrentamento do governo ao acesso à informação tem tido efeitos desastrosos na atual crise sanitária. A confiança nos canais oficiais do governo se esvai, enquanto confunde-se a população com informações desencontradas, fake news e declarações sem embasamento científico. Nessa perspectiva, evidencia-se a importância da robustez da transparência da informação e dos processos ocorridos no interior do Estado. Sem transparência na coisa pública, torna-se impossível uma reação articulada e coerente frente a crises como a que estamos enfrentando.
Referências:
DAGNINO, E.; OLVERA, A.J.; PANFICHI, A. Por uma outra leitura da disputa pela construção democrática na América Latina. In: DAGNINO, E.; OLVERA, A.J.; PANFICHI, A. A disputa pela construção democrática na América Latina. São Paulo: Paz e Terra; Campinas, SP: Unicamp, 2006.
¹Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal da Bahia. Vinculado ao grupo de pesquisa Democracia, Participação e Representação Política (DEPARE).
Como citar:
MENEZES, Diego Matheus. A transparência do governo federal hoje: um breve balanço. In: Nuevo Blog, 29 Jun. 2020. Disponível em: https://nuevoblog.com/2020/06/29/a-transparencia-do-governo-federal-hoje-um-breve-balanco/. Acesso em: ??
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