Literatura negra de resistência: três escritoras brasileiras, Firmina, Carolina e Bianca

Ângela Maria Rubel Fanini¹

Nesta comunicação, apresentaremos obras de algumas escritoras negras brasileiras do século XIX e  XX, tratando das vozes sociais que daí  emergem. Maria Firmina dos Reis, escritora maranhense e romântica do século XIX, nascida em 11 de março de 1822 e falecida em 11 de novembro de 1917, foi romancista negra, sendo uma intelectual bastante atuante, exercendo o magistério, dirigindo  escolas e tendo um ativismo político ímpar em sua época. Sua obra principal, o romance Úrsula é uma história de amor folhetinesca entre dois jovens brancos que passam por inúmeras peripécias, tendo um desenlace trágico. Porém o que  se destaca na obra é a questão da escravidão negra no Brasil oitocentista, sendo que as personagens de origem africana apresentam um protagonismo bastante acentuado na fábula. São personagens que trazem o cativeiro para a obra, criticando-o em plena vigência do regime escravista. Esse fato esclarece da importância de seus escritos. A escritora foi tardiamente reconhecida para além do Maranhão apenas no século XX, década de sessenta,  visto que o ambiente laboral intelectual da época em que escreveu era inóspito para as mulheres escritoras. Teve certa relevância no ambiente maranhense, mas não foi além disso. O cenário era patriarcal e as romancistas não conseguiam se projetar neste universo fechado. No século XX temos já uma certa leitura e  visibilidade da autora. Só tardiamente é que se considera a sua obra enquanto pertencente à Literatura Brasileira, sendo a obra em questão, Úrsula, nosso primeiro romance abolicionista. O historiador Horácio de Almeida (1896-1983) colocou a escritora em evidência quando encontrou sua obra por acaso, que embora estivesse sob pseudônimo (Uma maranhense), foi descoberta sua verdadeira autoria mediante intensa pesquisa de Horácio.  Notamos (Fanini e Passos, 2020) que a escritora tem sido objeto de leitura mais substantiva nas áreas de Letras, Sociologia, História e Pedagogia do período de 2000 para os dias de hoje. Isso se deve ao fato que no ano de 2003 há no Brasil uma legislação que prevê a obrigatoriedade de conteúdo afro-brasileiro no currículo do ensino básico e fundamental. Disciplinas são criadas a fim de trazer a questão africana para o estudo e conhecimento de nossos alunos. Muitos cursos de licenciatura comportam em suas matrizes curriculares essa temática. Também a redescoberta da autora atende a um fortalecimento dos grupos negros brasileiros em busca de sua história por vezes esquecida e silenciada. Tanto a academia quanto os movimentos sociais e o marco legal são responsáveis por esse reflorescimento da obra de Firmina.

Outra autora importante nesse cenário é Carolina de Jesus (Sacramento, 14 de março de 1914 — São Paulo, 13 de fevereiro de 1977). Notabilizou-se por seu livro Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada. Essa obra biográfica é já conhecida de alguns, mas não de muitos. Carolina, diversamente de Firmina, pertence a um um estrato social muito humilde, vivendo em favela. Não obteve instrução formal como Firmina. Apesar disso, seu estilo é literário, pois foi autodidata. Lia tudo o que encontrava nos lixos e também relata que muito leu em casa  de um antigo patrão onde trabalhou de empregada doméstica. É descendente de escravos tal qual nossa escritora maranhense. A obra referida se manifesta como um diário, contando a estafante vida da escritora na condição de favelada e catadora de lixo que diariamente faz o seu percurso pela cidade paulista a fim de obter algo para sobreviver. Mora em um barraco e sustenta seus filhos às custas do que colhe durante o dia, escrutinando os lixos domésticos, vendendo o que encontra. Trabalha de dia e escreve, à noite, sobre sua sina e lida. É descoberta por um jornalista, Audálio Dantas,.  na década de sessenta, quando este trabalhava em um documentário na favela de Canindé, São Paulo. O jornalista a ajuda na publicação dos manuscritos. Em pouco tempo, ficou famosa e passou a uma condição material melhor de existência. O livro fez um enorme sucesso e chegou a ser traduzido para catorze línguas Sua obra realista foi bem recebida, mas acabou no quase anonimato (morre muito pobre e esquecida), sendo também mais revistada a partir de 2000, pelas mesmas condições postas para Firmina. Sua escrita decorre de um olhar literário sobre seu labor cotidiano. Fanini e Prado (2014) enfatizam o teor realista do estilo que traz o labor diário mediante uma construção literária de qualidade que entrelaça literatura e vida. Trabalhadora braçal e intelectual promanam de sua escrita.

Outra escritora negra que desponta na atualidade é a jornalista e professora Bianca Santana (São Paulo, 1984) Sua obra Quando me descobri negra (uma dos vencedoras do Prêmio Jabuti na categoria ilustração )  nos traz um pouco da vida de Bianca, sendo parcialmente autobiográfica e também recria outras vozes sociais que escutou, demonstrando claramente que, embora não haja mais escravismo econômico no Brasil visto que o trabalho escravo é crime, há uma cultura escravocrata que perdura até hoje. Comprava-se, pois que a nossa infraestrutura se alterou por legislação, mas nossa superestrutura ainda se reporta ao século XIX quando a escravidão tinha caráter legal. Bianca trabalha com falas cotidianas racistas que escutamos diuturnamente, trazendo a violência da linguagem. Os discursos racistas geram práticas e comportamentos agressivos. Essas vozes sociais estão em toda a parte, nas empresas, nas academias, nas igrejas, nas escolas, nas famílias e sustentam o racismo estrutural. 

A literatura que emerge dessas escritoras é colada à realidade cotidiana nacional, vinculando a literatura à vida. O discurso literário é sempre uma resposta às questões concretas do dia-a-dia de homens e mulheres. É uma escrita de si e de todos, pois é biografia e crônica social simultaneamente  para parafrasear Georg Lukács, grande pensador da literatura realista. Essas escritoras dissertam sobre o que vêem e o que observam e o que vivem. Não é ficção no sentido de algo inventado e fora da realidade. Sua escrita é engajada e tem como função social a denúncia e a resistência à opressão. No dizer de outra intelectual negra, Conceição Evaristo, é um discurso literário da escrevivência, ou seja, a literatura é reflexo da realidade e também sua refração, pois parte do concreto, mas é um certo olhar ideológico e axiológico sobre o empírico. Ler essas escritoras é entender parte da  história  do povo negro no Brasil e de como resistem à cultura escravocrata. A literatura, no dizer de Alfredo Bosi e Antonio Candido, deve ter função social no sentido de abrir caminhos para a emancipação do sujeito.  Firmina, Carolina e Bianca cumprem um papel social importante ao trazer vozes sociais engajadas no firme propósito de contar a história do povo negro no Brasil e de sua coragem e virtude. Convido os estimados leitores e leitoras a ler essas obras. Aí não encontrarão deleite, prazer do texto, gratuidade. Mas estarão face a face com a realidade discursiva e violenta da sociedade brasileira. Também verão a resistência e a força negras cujos braços e vozes construíram muito do que somos enquanto brasileiros!

Referências:

FANINI, A. M. R.; PASSOS, J. C.. A importância da obra Úrsula de Maria Firmina dos Reis: um libelo contra a escravidão em forma de romance. Cadernos de Gênero e Tecnologia, v.13, n.41, 2020.

FANINI, A. M. R.; PRADO, C. S. L. A centralidade da linguagem e do trabalho em Quarto de Despejo . Revista Línguas & Letras, v. 15, n. 29, 2014.

¹Pós-doutora em Letras pela Universidade de Aveiro, Portugal. Doutora em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR).

Como citar:
FANINI, Ângela Maria Rubel. Literatura negra de resistência: três escritoras brasileiras, Firmina, Carolina e Bianca. In: Nuevo Blog, 30 Jun. 2020. Disponível em: https://nuevoblog.com/2020/06/30/literatura-negra-de-resistencia-tres-escritoras-brasileiras-firmina-carolina-e-bianca/. Acesso em: ??

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