
Priscilla Borgonhoni Chagas¹
Nos primeiros dias de janeiro de 2020 a imprensa de todo o mundo alertava sobre um novo coronavírus (COVID-19) que estava ganhando terreno na China, causando grande impacto sobre a rede hospitalar, dizimando vidas e causando repercussões na dinâmica econômica daquele país. Rapidamente o vírus se espalhou pelo mundo. Especificamente no Brasil, o Ministério da Saúde confirmou o primeiro caso positivo de COVID-19 em 26 de fevereiro de 2020. A confirmação também era a primeira ocorrência na América Latina. Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou o surto de uma pandemia.
Diante disso, no mundo todo diversas medidas de contenção foram tomadas para evitar a sua propagação, evitando, assim, o aumento demasiado do número de casos e o colapso do sistema de saúde. As medidas de contenção mais utilizadas em estados e municípios foram o isolamento domiciliar e distanciamento social da população. Nesse contexto, a expressão “fique em casa” foi propagada e estimulada sensatamente por diversos agentes sociais e instituições. Nossas relações com a cidade sofreram grande alteração e exacerbou-se a valorização do espaço privado. Desde então tenho feito diversos questionamentos, dentre eles: e as pessoas que não têm o privilégio de cumprir o isolamento domiciliar? E quem não tem casa (tal como a população em situação de rua)? Quem tem, quais as condições das moradias? Até quando grande parte da população poderá ficar em casa, tendo em vista que não possuem renda fixa para o seu sustento? Como se dará o acesso ao sistema de saúde pelas pessoas contaminadas?
Embora auxílios emergenciais tivessem sido aprovados e disponibilizados (com relativa demora) para trabalhadores informais e de baixa renda e microempreendedores individuais, tais ações têm duração e espectro limitados. Assim, temos acompanhado que as medidas de isolamento domiciliar e distanciamento social surtiram efeito nos meses de março e abril, porém se enfraqueceram nos meses seguintes, mesmo diante do número crescente de óbitos e casos por COVID-19.
A pandemia revelou faces cruéis e exacerbou problemas socioespaciais que se refletem nas cidades e que precisam ser discutidos, reivindicados pelos movimentos sociais e (re)colocados na agenda pública. O déficit habitacional e as moradias precárias, a falta de saneamento básico que ainda persiste em muitas partes do país, transportes públicos lotados e pouco eficientes, o desemprego e o trabalho informal, a dificuldade de acesso aos equipamentos urbanos comunitários por grande parte da população são algumas questões que precisam ser retomadas com urgência no Brasil e desvelam que o direito à cidade não é devidamente assegurado a todos os cidadãos e cidadãs.
O conceito de direito à cidade foi originalmente cunhado pelo filósofo e sociólogo francês Henri Lefebvre em 1968, em meio aos movimentos estudantis de seu país. Ao analisar o contexto parisiense, o autor escreveu sobre a segregação socioeconômica e seu fenômeno de afastamento, onde os pobres estavam sendo forçados a viver em guetos residenciais longe do centro da cidade. Lefebvre (1969) revelou que a cidade estava se transformando em mercadoria e descreveu o processo contraditório da produção do espaço, que ao se tornar valor de troca, é parte importante do processo de valorização do capital. Para este importante pensador da problemática urbana, o direito à cidade se caracterizava pela não exclusão das qualidades e dos benefícios da vida nas cidades, um direito coletivo na construção e reconstrução do espaço urbano por grupos marginalizados que viviam nos distritos periféricos.
Mais recentemente, o conceito foi revisitado e ganhou força no contexto brasileiro e mundial. Os protestos de junho de 2013 no Brasil e na Turquia fizeram com que muitos autores o retomassem, e a luta pelo direito à cidade passou a ser depositária das expectativas de mudança, das projeções de justiça, democracia e igualdade na cidade (TAVOLARI, 2016). Harvey (2003; 2014) defende que esse direito equivale a reivindicar algum tipo de poder configurador sobre os processos de urbanização, sobre o modo como nossas cidades são feitas e refeitas, uma forma de tornar a cidade mais justa e mais igualitária.
O debate do direito à cidade no contexto brasileiro é premente e é reivindicado por movimentos coletivos das mais diversas esferas e com diferentes demandas. Como advoga Carlos (2020), o destino desta sociedade é a sociedade urbana e o urbano sinaliza a construção de uma outra sociedade, que não se fará nem pela empresa, nem pelo Estado, mas no movimento da prática social. Assim, a cidade só pode ser reinventada por meio do exercício de um poder que demande do coletivo agir sobre o processo de construção da urbe e do espaço urbano, processo esse que vai além do espaço físico, mas representado também pela organização política, econômica e social. Diante da crise que estamos vivendo, torna-se fundamental o desenvolvimento de estudos e pesquisas que problematizem o direito à cidade no campo da Administração e mais especificamente nos Estudos Organizacionais, desvendando a cidade e o espaço urbano como campo de lutas, em que diversos agentes sociais buscam implementar distintos projetos de organização e planejamento urbanos. É necessário revelar as práticas coletivas de organização presentes em seus espaços e, ao mesmo tempo, vislumbrar como a cidade é organizada e governada.
Enfim, as cidades são o espaço central da vida cotidiana e são nelas em que resistências precisam ser travadas para melhorar as condições de vida das pessoas, sobretudo no contexto pós-pandemia. Assim, acredito que a compreensão do direito à cidade pode possibilitar um novo olhar sobre a urbe a partir de conexões interdisciplinares e abrir caminhos para que ela seja entendida como palco de lutas e locus de manifestações necessárias de forma a torná-la mais justa, acessível e igualitária para todas e todos.
Referências:
CARLOS, Ana Fani Alessandri. Henri Lefebvre: o espaço, a cidade e o “direto à cidade”. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 11, n. 1, p. 349-369, mar. 2020.
HARVEY, David. The right to the city. International Journal of Urban and Regional Research, v. 27, n. 4, 2003.
HARVEY, David. Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. São Paulo: Martins Fontes, 2014.
LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. Tradução de T. C. Netto. São Paulo: Documentos, 1969.
TAVOLARI, Bianca. Direito à cidade: uma trajetória conceitual. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, v. 35, n. 1, p. 93-109, mar. 2016.
¹Professora Adjunta do Departamento de Administração da Universidade Estadual de Maringá, atuando no Programa de Pós-Graduação em Administração (PPA/UEM). Doutora em Administração, na área de concentração Estudos Organizacionais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Pesquisadora do INCT/Observatório das Metrópoles – Núcleo Região Metropolitana de Maringá.
Como citar
CHAGAS, Priscilla Borgonhoni. O pensar e o repensar o direito à cidade em tempos de (e pós) pandemia. In: Nuevo Blog, 08 Jul. 2020. Disponível em: https://nuevoblog.com/2020/07/08/o-pensar-e-o-repensar-o-direito-a-cidade-em-tempos-de-e-pos-pandemia/ . Acesso em: ??
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