
Juliana Lazari¹
Umberto Eco[i], em seu famoso livro História da Feiúra, expõe com análise de imagens e textos esse conceito estético que confronta a Beleza. A feiúra, muitas vezes, é associada ao ruim, ao mal, horrendo, repulsivo, horripilante, desprezível, odioso, grotesco, entre muitos outros conceitos considerados negativos. No entanto, nos relembra Eco que, ao visitar obras do passado, não temos condições de verificaro Feio e o Belo, pois apenas dispomos de testemunhos artísticos desses períodos anteriores, não fomos subjetivados com o modo de pensar daquele tempo. Temos diferenças culturais gritantes, vemos as coisas com ‘olhos ocidentais’ e muitas vezes afrentamos dificuldades em saber como determinados conceitos podem ser associados aos nossos.
Assim, denominamos o Feio e o Belo como conceitos relativos ao tempo e à cultura. O conceito de Feio Industrial apresentado por Eco nasce durante a Revolução Industrial, com o surgimento do proletariado operário e também com os centros urbanos em expansão e abarrotados de gente. Começa assim uma crítica ao universo industrial, que eclode com sintomas de revolta dentro da própria burguesia e com um olhar negativo aos sistemas a que pertence. Não seria diferente nas artes, veículo de expressão cultural que possibilita a visibilidade desse descontentamento, o que corrobora com o pensamento de Giosuè Carducciao descrever a máquina a vapor como um monstro belo e ao mesmo tempo horrível, ou nas pinturas de diferentes autores pelo mundo, que mostram, nos anos seguintes, o pensamento do proletariado e sua revolta diante do sistema que os domina.
Um exemplo disso foi o movimento norte-americano chamado 14th streetschool[ii] – formado por pintores que residiam ao redor da Union Square em Nova Iorque durante os anos da Grande Depressão, que atingiu o país na primeira metade do século XX. Nessa região, durante os anos 1930, existia um grande número de bancos, lojas e diversas companhias que caracterizavam esse cenário como um ambiente com “ar de prosperidade”. Os artistas reunidos nesse grupo pensavam em retratar, de forma realística, trabalhadores – homens e mulheres –, consumidores da classe média e vendedores ambulantes, com certo cinismo e ironia em relação à situação econômica.
Negando as vanguardas modernistas, em especial o Impressionismo, e revelando as singularidades de uma vida ordinária, os protagonistas dessas obras eram pessoas comuns. De certa forma, o movimento ilustrava ambientes urbanos e expressava a elaboração de um perfil dos habitantes desses espaços. Artistas como Kenneth Hayes Miller, Edward Laning e Raphael Soyer, influenciados pela Ashcanschool, são considerados representantes desse movimento que rejeitava a Academia de Belas Artes.
Entre as influências do grupo,as obras de Goya, Velázquez, Manet e Degasexerceram forte impacto nos trabalhos da 14th streetschool, auxiliando na aplicação dos conceitos clássicos para retratar de maneira realista a dureza da vida durante a Grande Depressão. É nesse cenário que, se afastando um pouco do perfil ilustrado pelos artistas da 14th streetschool, Isaac Soyer(1903 -1981)[iii] mostra a sua realidade da Grande Depressão. Soyer nasceu na Rússia, mas foi retratando os nova-iorquinos que ele conquistou reconhecimento enquanto artista. Seus trabalhos ilustramnão apenas amigos e parentes, como também o cotidiano da classe trabalhadora.
Sua obra, de 1937,intitulada “Agência de emprego” (fig. 1), retrata personagens que parecem desistir da vida. A desmotivação pode ser melhor contemplada no retrato do homem de marrom, sentado, cabisbaixo e com ar de derrota, que expressa os sentimentos dos pintores desse período. Existe uma atmosfera decadente que paira em toda a obra e que se contrasta com a visão de prosperidade da Union Square no período. Soyer, dessa maneira, mostra um lado diferente de seus contemporâneos: seus personagens passivos aceitam o destino, não protestam e é assim que ele representa uma realidade comum das salas de espera espalhadas pela cidade.

De uma maneira um pouco diferente do cidadão pacífico ilustrado por Soyer, a feiura industrial é apresentada por Otto Griebel[iv] (1895-1972). Nascido na Alemanha, Griebel[v] foi cofundador da Associação de Artistas visuais revolucionários do país. Desde 1920 seu nome já era reconhecido como pertencente ao hall dos grandes artistas que representavam a revolução do proletariado. Em 1933 foi preso pela Gestapo, e solto pouco tempo depois, após inúmeras reivindicações em seu favor. Além de toda a sátira política presente em seu trabalho, Griebel era dadaísta em sua formação e também cultivava a arte nonsense. No entanto, é pela arte revolucionária que seu trabalho é lembrado, em especial pela sua obra A Internacional (1928 – 30)[vi].

Os trabalhadores retratados lado a lado possuem olhar atento e direcionado ao espectador (fig.2). É com esse detalhe que Griebel consegue dar força ao movimento trabalhista e, de maneira implícita, diz que tal movimento só daria certo se houvesse união entre os pertencentes ao proletariado. O título da obra remete à canção escrita para celebrar a Comuna de Paris (março/maio 1871), música que se tornou hino para militantes ao redor do mundo. Ao espectador mais atento,é como se os personagens entoassem a canção na busca de reivindicar seus direitos.
Com a Grande Depressão, a opinião política da população ganhou novos parâmetros e força, se tornando muito mais crítica. Lewis W. Hine(1874 -1940)[vii], fotógrafo do Comitê Nacional do Trabalho Infantil (NCLC), também contribuiu para a expressão desse movimento chamado Feio industrial. Utilizando-se da fotografia como um registro para denúncias, Hine fotografou diversas cenas de crianças trabalhando e,com fins didáticos, publicou em jornais e outros meios de comunicação da própria NCLC no final da primeira década do século XX como um alerta revolucionário.
Suas fotos, segundoo jornal Washington Post, ajudaram a colocar fim ao trabalho infantil na América. Childlabour in the United States, uma fotografia de 30 de novembro de 1908, mostra uma menina de apenas dez anos de idade exercendo uma atividade comum durante aqueles tempos: o trabalho. Cena essa que se repetia por todo o país e em ambientes industriais diferenciados[viii]. Indústrias viam benefícios em empregar crianças porque assim podiam oferecer empregos não qualificados, salários mais baixos e utilizar da habilidade de mãos pequenas no manuseio de peças menores. Crianças eram vistas como parte da economia familiar.
As verossimilhanças aparentes, produzida por câmeras, tornam a fotografia uma grande ferramenta para identificar tendências sociais, políticas ou econômicas. O olhar do fotógrafo se torna essencial. É o seu ponto de vista que irá direcionar a interpretação dos fatos de uma fotografia documental.
Hine costumava retratar figuras individuais em seus ambientes de trabalho; na imagem, vemos como ele utilizou linhas convergentes para enquadrar a criança que olha pela janela como se sonhasse com uma vida melhor. O fotógrafo utilizou uma lente objetiva com grande abertura para criar pouca profundidade de campo, assim ele criava um campo focal: a criança (fig.3).

A sociedade reconhece um senso intuitivo sobre a feiura. O que nos incomoda tende a ser feio, agressivo, preocupante. A arte pós-industrial expressa nas imagens o seu incômodo ao modo de vida capitalista, seja na pintura ilustrativa e passiva de Soyer, no retrato de uma união agressiva de Griebel ou na denúncia fotográfica de Hine. Artistas tentaram expressar sua revolta como uma atividade social. A arte exerce assim uma importante função: chamar a atenção das massas para um alerta econômico, social e político.
O choque do feio industrial é uma tática eficaz da arte social, faz pensar, refletir e questionar as trocas sociais e o sistema em que vivemos.
Referências:
[i] ECO, Umberto. História da Feiura. Rio de Janeiro: Editora Record, 2014.
[ii] FOURTEENTH Street School. The Arthistory. Disponível em: https://www.theartstory.org/movement/fourteenth-street-school/. Acesso em: 13 jul. 2020.
[iii]SOCIAL realism. The Art History. Disponível em:https://www.theartstory.org/movement/social-realism/artworks/.Acesso em: 13 jul. 2020.
ISAAC SOYER a painterofthe American scene. The New York Times, July, 16th, 1981. Disponível em: https://www.nytimes.com/1981/07/16/obituaries/isaac-soyer-a-painter-of-the-american-scene.html. Acesso em: 13 jul. 2020.
[iv] OTTO Griebel. World Encyclopedia of Puppetry Arts. Disponível em: https://wepa.unima.org/en/otto-griebel/. Acesso em: 13 jul. 2020.
[v] OTTO Griebel. Weimar. Disponível em: http://weimarart.blogspot.com/2010/06/otto-griebel.html. Acesso em: 13 jul. 2020.
[vi] OTTO Griebel. The internationale. Arts and Culture. Disponível em: https://artsandculture.google.com/asset/the-internationale-otto-griebel/mgGJeCxDDDq-GQ. Acesso em: 13 jul. 2020.
BOURKE, Joanna. Aftermath: Confronting oblivion. TATE gallery, London, UK , 2018. Disponível em: https://www.tate.org.uk/tate-etc/issue-43-summer-2018/aftermath-confronting-oblivion-joanna-bourke. Acesso em: 13 jul. 2020.
[vii] LOWE, Paul. Mestres da Fotografia: Técnicas criativas de 100 grandes fotógrafos. São Paulo: Gustavo Giis, 2017.
TEACHING With Documents: Photographsof Lewis Hine: Documentation of Child Labor. National Archives. Disponível em: https://www.archives.gov/education/lessons/hine-photos. Acesso em: 13 jul. 2020.
[viii] MORTON, Ella. The Photos that Exposed American Child Labor.Atlas Obscura, l2016. Disponível em: https://www.atlasobscura.com/articles/the-photos-that-exposed-american-child-labor.Acesso em: 13 jul. 2020.
CONTRERA, Jessica. The searing photos that help edend child labor in America. Washington Post, Setembro, 2018. Disponível em: https://www.washingtonpost.com/newas/retropolis/wp/2018/09/02/the-incredible-photos-that-inspired-the-end-of-child-labor-in-america/. Acesso em: 13 jul. 2020.
¹Licenciada em Artes Visuais pela Faculdade de Artes do Paraná. Especialista em Arte contemporânea pela Universidade Tuiuti. Especialista em Fotografia e imagem em movimento pela Universidade Positivo.
Como citar
LAZARI, Juliana. O Feio Industrial na vida moderna. In: Nuevo Blog, 15 Jul. 2020. Disponível em: https://nuevoblog.com/2020/07/15/o-feio-industrial-na-vida-moderna/. Acesso em: ??
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