
Catia Toledo Mendonça¹
Qual o lugar da arte na sociedade? A quem pertence o espaço dos museus, das escolas de música, de dança e de pintura?
“A arte existe porque a vida não basta”, afirmou Ferreira Gullar[i], poeta e crítico de arte, que em 2016 nos deixou. Infelizmente, o contato com a arte não tem sido propiciado a todos, assim como a própria consciência da importância da arte em nossas vidas, mesmo e principalmente para aqueles cujas vidas são tão difíceis.
Quantos museus existem nas periferias das diversas cidades brasileiras? Quais escolas públicas incentivam seus alunos a ter contato com a arte, seja por meio de projetos comunitários ou de excursões que os levem a teatros e museus? Pelas experiências que vivi participando de projetos junto ao ensino básico, pude perceber que a arte não é priorizada nas escolas, principalmente naquelas situadas em periferias.
Fazendo essas reflexões, busco o livro de Luiz Pimentel e Fátima Chaguri[ii], O grito do Hip Hop, lançado, em 2004, na Coleção Vaga-lume, pela Editora Ática, e destinada para o público juvenil, que traz como substrato discussões interessantes relativas aos questionamentos feitos aqui.
A história se passa no Capão Redondo, periferia de São Paulo. A narrativa ganha o tom de crônica, quando nos apresenta o retrato da comunidade onde vivem os personagens.
Já de início, encontramos Toninho, envolvido em confusão, porque estava, junto com seus amigos, Gera e Beó, pichando um muro, e a polícia os flagra. Os três adolescentes, são levados para delegacia, mas não antes de sofrer com a violência policial, como se nota no trecho a seguir
– Então os pivetes brincavam de embelezar a cidade, hein? O sargento ironizou, cutucando com o cassetete o pé machucado de Beó.
Toninho tentou negar, mas um dos policiais apanhou uma lata de spray do chão e começou a esvaziá-la no rosto e na camisa do jovem.
– Para com isso, moço!
Levou uma cacetada nas costas, nem soube de qual dos policiais. A dor fez com que perdesse a voz.[iii]
A violência policial, principalmente nas comunidades periféricas, tem sido muito discutida. Em 2019 o número de pessoas mortas pela polícia no Brasil chegou a 5804, acusando um aumento de 1,5% em relação a 2018, segundo o que o portal G1 noticiou em 16 de abril. O levantamento faz parte do Monitor da Violência, uma parceria do G1 com o Núcleo de Estudos da Violência da USP e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública[iv]. Esses dados foram computados a partir da informação de 25 estados e do Distrito Federal.
De volta à narrativa, a violência contra os jovens não para aí. O skate de um dos meninos é tomado pelo policial, que afirma querer dá-lo ao filho. Depois eles são jogados dentro da viatura, que antes de ir para a delegacia, percorre em velocidade as ruas da cidade. No trajeto, os meninos são jogados de um lado para o outro. Eles passam a noite na delegacia e só são soltos quando a mãe de um e o irmão de outro vão soltá-los. As agressões são omitidas, por medo de represálias .
Ao voltarem para a comunidade, descobrem que Nego Leco ‘tinha ido pro saco”, com “três balaços nas costas”[v] por causa de uma dívida do crack. Encontram a mãe do rapaz, chorando com o filho morto nos braços (A pietà?). Este não era o primeiro amigo a ser morto. Dias antes Zoinho havia morrido em um baile funk, consequência de um “acerto de contas”
A violência faz parte do cotidiano da comunidade e está presente em todos os níveis, seja em casa, como a mãe de Beó, que lhe deu uns tapas, seja nas ruas, com a morte dos amigos de infância. A favela é descrita como um lugar de pobreza e segregação. O morador é visto como marginal, no sentido mais amplo da palavra.
Toninho presencia a morte do amigo, Betão, que totalmente drogado resolve assaltar um ônibus e acaba morto a tiros. A música do grupo Racionais traduz seus sentimentos ” Não quero ter que achar normal ver um mano meu coberto por jornal”[vi].
É nesse contexto que surge o Centro Comunitário, como uma alternativa para a vida de Toninho. Lá os jovens têm contato com as artes (há aulas de música, dança e desenho) e começam a ver novas possibilidades para seus destinos.
Toninho, que era do “picho”, para quem “pichar era adrenalina da veia”[vii], era uma forma de deixar “a marca da tribo nos lugares mais radicais”, conhece a possibilidade de transformar o seu dom para o desenho em arte. Pelo contato com Helião, que comandava as atividades artísticas do centro. Antonio Clodoaldo aproximou-se do Hip Hop em seus vários elementos, ou seja, o grafite (o desenho, a pintura), DJ( a música, o ritmo), MC(poetas, autores das “rimas” dos raps), B-boy e B-girl(dança) . O lema é paz, amor, união e diversão e seu objetivo é dar voz, visibilidade e identidade aos jovens que praticam dança (b-boy e b-girl), pintura/arte (grafite), música (DJ) e composições/poesia(MC). O Hip Hop aparece como a arte representativa da periferia.
É com Helião que ele conhece a história de Basquiat, o pichador do metrô de Nova York que descoberto por Andy Warhol passou de marginal a artista. É apresentado a Malcom X, ativista americano que esteve à frente do Nacionalismo Negro, e tem contato com vários grupos de rap, que faziam shows na comunidade.
A partir da aproximação com o grafite, Toninho passa a ver de outra forma os seus desenhos. Deixa de sair para pichar e, a partir das folhas que ganha no trabalho, passa a desenhar compulsivamente, denunciando em seus traços toda a revolta que sentia. Os amigos mortos, o ex patrão que o humilhara ganham espaço nos desenhos, que são apreciados pelos novos amigos. É quando ele ouve pela primeira vez a palavra estética e descobre que pode haver uma beleza própria de sua comunidade.
Incentivado por Helião, pela namorada Aline e por Laura, a arquiteta que o emprega, quebra sua resistência em relação ao contato com a arte. Até então, para ele, museus e artistas eram “coisa de bacana”, “frescura, coisa de plaibói, esse negócio de museu”[viii].
A nova perspectiva traz um conflito para o rapaz, que fica entre a “adrenalina” do picho e o reconhecimento da namorada, da patroa e do novo amigo em relação a seus desenhos. Como o grupo do Centro Comunitário critica a pichação, destaca o lado negativo de danificar a propriedade, Toninho acaba se afastando das antigas amizades e se nega a acompanhá-los em um giro do picho.
Assim, ao ser convidado a ir, junto com os outros jovens do Centro Comunitário à Pinacoteca , vence a relutância inicial e acompanha Aline, que já fazia parte do pessoal do grafite. Helião organiza o grupo de meninos de “bermudão, camiseta larga e boné de aba reta”, que causa estranhamento na monitora que os guia pelas exposições. Helião esclarece que “eles são grafiteiro e meus aluno”[ix] . Durante toda a narrativa, nos diálogos, a variante linguística do grupo é retratada, principalmente, pela ausência de plural e pela presença constante de gírias, marcas do falante que teve pouco acesso à escolaridade. No entanto, em momento algum essa reprodução se caracteriza como crítica, mas como elemento necessário para a caracterização do grupo.
O texto, a partir daqui, faz referência à exposição de Manuel Millares, que aconteceu na Pinacoteca de São Paulo em 2001, por ocasião da mostra “De Picasso a Barceló: coleção do Museu Nacional Centro Reina Sofia”. As informações vêm em uma nota de rodapé[x].
Toninho, ao se ver frente ao quadro “O assassinato do amor”, uma pintura abstrata de Manuel Millares, sente-se extasiado. Ao ouvir da monitora que o quadro poderia ter várias interpretações diferentes, dependendo de quem o visse, Toninho pensa que para ele aquele quadro, que sugeria uma aproximação com a morte, o leva a pensar em seu pai, fora assassinado em um assalto, assim como o remete à morte de Betão, de Zoinho, de Nego Leco…
Em um momento de epifania, Toninho reflete: “Então pintura é isso?” O quadro transmitia a dor que ele conhecia[xi]. Nem mesmo o esboço de Guernica, que fazia parte da exposição, tocou Toninho como o “Assassinato do amor”. Ele tinha necessidade de falar com todos sobre o quadro, mas a sensação dele frente à obra de arte era única. Ninguém a vira da mesma forma.
A história termina nesse momento, em que Toninho descobre a beleza na arte.
Embora a narrativa peque por um certo utilitarismo, vejo-a como uma possibilidade de trazer para os jovens, principalmente os de periferia, a discussão sobre a importância da arte em suas vidas. Também a vejo como uma denúncia sobre a segregação das comunidades periféricas em relação a espaços culturais. A arte desperta o sensível e combate a violência.
Enfim, acredito que a Arte é um bem de todos e a ela todos devem ter acesso.

Referências:
[i] GULLAR, Ferreira. Porque a vida não basta. Canal Sesc RJ, 2015. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Zf71WNIt3gw. Acesso em: 29 jun. 2020.
[ii] PIMENTEL, Luiz; CHAGURI, Fátima. O grito do HIP Hop. São Paulo, Ática, 2004.
[iii] Idem item ii, p. 14.
[iv] VELASCO, Clara; GRANDIN, Felipe; REIS, Thiago. Número de pessoas mortas pela polícia cresce no Brasil em 2019; assassinatos de policiais caem pela metade. G1, 16 abr. 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/2020/04/16/numero-de-pessoas-mortas-pela-policia-cresce-no-brasil-em-2019-assassinatos-de-policiais-caem-pela-metade.ghtml. Acesso em 29 jun. 2020.
[v] Idem item ii, p. 26.
[vi] Idem item ii, p. 106.
[vii] Idem item ii, p. 36.
[viii] Idem item ii, p. 133.
[ix] Idem item ii, p. 137.
[x] Idem item ii, p. 138.
[xi] Idem item ii, p. 139.
¹Graduada em Letras pela Universidade Federal do Amazonas. Mestre e Doutora em Letras pela Universidade Federal do Paraná. Professora da UNESPAR, Campus Paranaguá.
Como citar
MENDONÇA, Catia Toledo. Arte e violência: da periferia à Literatura. In: Nuevo Blog, 23 Jul. 2020. Disponível em: https://nuevoblog.com/2020/07/23/arte-e-violencia-da-periferia-a-literatura/ . Acesso em: ??
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