A Indústria Cultural como (Re)Produtora de Modos de Vida

Egon Bianchini Calderari¹

Luciana Lima²

Este breve ensaio propõe uma discussão sobre a indústria cultural como (re)produtora de modos de vida na sociedade hodierna e como este se configura na hegemonia da consciência, isto é, na maneira de pensar e na socialização dos indivíduos no interior da  sociedade capitalista, retirando destes qualquer possibilidade de crítica e reflexão, logo de transformação.

Para Weber (2013[i]), a conduta dos indivíduos na modernidade foi muito influenciada pelas reformas religiosas realizadas no ocidente. Para o sociólogo, a Reforma Protestante sobrepôs os valores socialmente aceitos que caracterizam a dignidade do viver à afirmação da vida cotidiana, em contraposição as concepções tradicionais que associavam a conduta ética a um plano superior externo ao sujeito. Weber (2013) denomina este fenômeno de transição valorativo como o “desencantamento do mundo”, no qual o processo de racionalização da sociedade ocidental levou ao abandono de uma orientação metafísica por parte dos indivíduos em direção à adoção de uma conduta racionalista da vida cotidiana, que se adaptou muito bem aos pressupostos do sistema capitalista. Este fenômeno, típico da modernidade, levou à racionalização da vida, que passou a ser orientada predominantemente pela racionalidade instrumental. O homem padrão moderno, de conduta admirável, passa a ser aquele capaz de orientar suas ações em busca da adequação dos meios disponíveis aos fins desejados.

Segundo Taylor (1997[ii]), o agir hodierno é condicionado a uma configuração hierárquica moral, que se restringe a um apanhado de distinções qualitativas capazes de provocar sensações e estabelecer padrões sobre o que é desejável e o que não é. Para o autor, é a partir de três eixos que o pensamento moral moderno pode ser pensado: o primeiro é o sentido de respeito e de obrigação perante os outros, que reside no reconhecimento da autonomia individual; o segundo é a compreensão do que pode ser entendido como uma vida plena, edificada no enaltecimento do cotidiano, a partir da valoração do trabalho e; o terceiro é a noção de dignidade, representada no merecimento ou não do respeito pelas pessoas que nos circundam. 

Os três eixos citados relacionam-se e reafirmam, em suas características, a importância da vida cotidiana. Pelos parâmetros que estabelecem, as práticas sociais passam a ser avaliadas pelos pares na convivência como aceitáveis, enquanto outras passam a ser consideradas reprováveis ou inaceitáveis. Esta hierarquia moral, entretanto, permanece oculta devido à naturalização das sensações e preferências individuais, feita pelos quais Taylor (1997) denomina como “ideólogos utilitaristas”. Segundo o autor, a validação da perspectiva utilitarista da realidade como natural e intrínseca ao ser humano, impede a elaboração dos horizontes qualitativos que orientam as ações sociais e contribui com a reprodução da ideologia capitalista individualista como a única forma possível de existência.

Sem a possibilidade de refletir sobre a complexa realidade, devido à ausência de um aparato teórico e de instrumentos reflexivos que permitam desvelar as estruturas de dominação que permanecem ocultas, os sujeitos são presas fáceis para um discurso simplificador, orientado ao exercício da dominação pelas classes mais altas, que são as detentoras do capital. Como resultado, o sujeito é individualizado e a polivalência das identidades sociais dá lugar à uniformização da polis na concepção ideal de homem utilitarista orientado à maximização. Os efeitos desiguais das relações coletivas estabelecidas intra e interclasses são reduzidos à dimensão individual e legitimados no cotidiano pela onipresença da indústria cultural.

A indústria cultural busca moldar as consciências das pessoas, naquilo que ela própria acredita ser a leitura adequada da realidade, sem colocar em xeque as contradições e as desigualdades da vida cotidiana perpassada pelo capitalismo, isso porque ela está inserida na própria estrutura de poder da sociedade hodierna sendo que o seu objetivo é o de dominação impondo de certa maneira um modo de vida.

Para Adorno e Horkheimer (1982[iii]) o processo civilizatório ergueu-se sob a repressão de determinados impulsos, o que significa um controle cada vez maior dos instintos primitivos, almejando transformá-los em racionais. A indústria cultural “constituiu uma forma de articular esses impulsos recalcados, construindo modelos de comportamento”[iv]. Justamente porque o progresso não conseguiu levar a cabo suas promessas, principalmente a de que todos tenham uma vida digna e justa.

O efeito produzido é uma tendência à regressão das consciências, visto que estas propendem a acompanhar um comportamento social criado pelos variados meios que se valem a indústria da cultura. Ou seja, para uma maior inserção social é necessária uma regressão individual, pois a regressão da consciência afeta sobremaneira o comportamento individual, o que pode ser constatado pelas manifestações de comportamentos irracionais produzidos pela sociedade e reproduzidos cada vez mais na vida cotidiana.

Destarte que uma parte significativa dos valores sociais é forjada, transformada e destruída pela influência de um fluxo contínuo de manifestações culturais transmitidas por intermédio dos mais variados segmentos de comunicação e difundidos socialmente. Pode-se afirmar que a ação desses mecanismos está exclusivamente nas mãos e nos interesses de seus manipuladores. Contudo,

os meios de comunicação são tão perfeitos, tão realistas, que o contrabando ideológico se realiza sem ser percebido, de modo que as pessoas absorvem a harmonização oferecida sem ao menos se dar conta do que lhes acontece. Talvez até mesmo acreditem estar se comportando de um modo realista. E justamente aqui é necessário resistir[v].

Os meios de comunicação massivos correspondem a um campo privilegiado da ideologia, pois, ao descartarem qualquer proposta de ensino, apresentam-se de uma forma fácil, direta e próxima dos receptores, o que não sugere dificuldade alguma de interpretação. Aqueles que nasceram, cresceram e se desenvolveram no interior deste mundo reproduzido parcialmente, dominado pelos meios de comunicação em massa, naturalizam em essência uma realidade que se apresenta, somente em sua aparência, sem contradições. Os indivíduos passam assim a não somente reproduzir ações sociais orientadas ao conjunto de crenças incorporadas desde a infância, mas também a legitimar, sem se dar consciência disso, a sua própria dominação.

A indústria cultural produz parcialmente, segundo Souza (2009[vi]), a vida simbólica individual. Ela cria, pela via da propaganda, a ilusão de que os privilégios modernos são justos, e justifica-os por intermédio de um discurso utópico, que defende a existência da igualdade e da liberdade entre todo e qualquer indivíduo. Esta construção ideológica é funcional pela capacidade que possui em isolar o sujeito da sociedade, como se houvesse tal possibilidade. Assim as características estruturais responsáveis pela abissal desigualdade entre classes permanecem ocultas sob a cortina da meritocracia.  Os problemas sociais são, deste modo, caracterizados como problemas do indivíduo, sendo o indivíduo o único responsável por sua própria trajetória. Consequentemente, se o sujeito não é capaz de almejar uma vida mais digna e alcançar uma condição socioeconômica melhor, a culpa é inteiramente dele, pois, pelos pressupostos defendidos por este discurso débil, as possibilidades apresentam-se para todos, sem qualquer distinção[vii]. As propostas as alternativas coletivistas são excluídas não porque são ineficazes, mas pelo fato de que confrontam com os padrões de ação vigentes que são considerados adequados, produzidos e replicados, defendidos e multiplicados por aqueles que se consideram esclarecidos, mas que no fim são apenas servos de um sistema que irá tritura-los no momento em que perceber a menor oportunidade.

Consequentemente, é possível pensar assim na indústria cultural como (re)produtora de modos de vida, capazes de orientar os sujeitos a ação a partir da reprodução de fragmentos da realidade, sem que, no entanto, evidencie as contradições implícitas no meio social. Como um mecanismo de dominação utilizado para legitimar o sistema capitalista frente aos sujeitos, a indústria cultural estabelece os limites máximos em que poderão ser, até mesmo, realizadas as críticas e discutidas as propostas de soluções aos problemas gerados pelos seus próprios mecanismos. À crítica é permitido apenas riscar a superfície da moldura turva que resguarda a pintura do mundo ideal, dado que não é possível acessar o seu conteúdo. O acesso à obra faria toda a espetacular estrutura do capital ser ameaçada pelas manchas de sangue e fuligem que lhe dão cores cruéis e que são imperceptíveis se não refletidas.

O maior desafio que se apresenta hoje é o enfrentamento do pensar hegemônico utilitarista, produzido e reproduzido pela indústria cultural. O momento atual, de constante mudança e transformação nos processos de interação e comunicação entre os indivíduos amplifica os desafios na busca pela proposição de novas interpretações à realidade. A disseminação das novas tecnologias da informação e comunicação e a descentralização na produção e na transmissão da informação possibilitam a inclusão de novas formas de dominação que incluem os sujeitos como os próprios arquitetos de suas jaulas, hoje construídas com materiais muito mais flexíveis do que o ferro. Não se conformar frente ao cenário social distópico vivenciado é assumir uma posição ao lado da complexidade e o único caminho possível em direção ao esclarecimento.

Referências:

[i] WEBER, M. A ética protestante e o espírito do capitalismo. Tradução de Mário Moraes. São Paulo: Martin Claret, 2013.

[ii] TAYLOR, C. As fontes do self: a construção da identidade moderna. Edições Loyola, 1997.

[iii] ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. A Indústria Cultural. In: SILVA, L. (Org.). Teoria da cultura de massa. São Paulo: Paz e Terra, 1982. p. 159-204.

[iv] RÜDIGER, F. Theodor Adorno e a crítica à indústria cultural: comunicação e teoria crítica da sociedade. 3 ed. Porto alegre: EDIPUCRS, 2004. (coleção comunicação), p. 216.

[v] ADORNO, T. W. Educação e emancipação. 3 ed. Tradução de Wolfgang Leo Maar. São Paulo: Paz e Terra, 2003, p. 86.

[vi] SOUZA, J. A ralé brasileira: quem é e como vive. Belo Horizonte: editora UFMG, 2009.

[vii] Idem item vi.

¹Mestre em Administração pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). Professor da Faculdade de Ciências Sociais e Aplicadas do Paraná.

²Doutora em Educação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Pós-doutoranda em Educação pela UFPR.

Como citar:
CALDERARI, Egon Bianchini; LIMA, Luciana. A Indústria Cultural como (Re)Produtora de Modos de Vida. In: Nuevo Blog, 30 Jul. 2020. Disponível em: https://nuevoblog.com/2020/07/30/a-industria-cultural-como-reprodutora-de-modos-de-vida/. Acesso em: ??

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