Somos números

Giselle Quaesner¹

Estava assistindo um Congresso na área educacional e muito se discutiu sobre o futuro da educação direcionado para a hibridização do ensino (onde há uma mescla entre a instrução presencial e a não presencial com auxílio da tecnologia), contudo pouco se abordou sobre políticas públicas voltadas aos que não possuem recursos para acesso aos aparatos tecnológicos. Da mesma forma, se expôs a necessidade da escola como refúgio aos/às sofredores/as que encontram no seio da instituição de ensino o suprimento das necessidades alimentares ou da amenização das violências sofridas na esfera familiar, mas não se apresentou as causas e possíveis soluções para as desigualdades e crueldades enfrentadas por tantas crianças e adolescentes.

Refletindo sobre essas questões compreendo que as decisões, em qualquer âmbito da organização política de nosso país, são tomadas por pessoas que não pertencem ao grupo atingido, ou pior, nunca tiveram contato com a realidade vivenciada por essas pessoas. São homens decidindo sobre questões referentes aos interesses e necessidades das mulheres, pessoas de alto grau de escolaridade debatendo as carências dos que precisam se esforçar muito para conseguir acesso ao estudo, pessoas de alta classe social (que nunca passaram por necessidades materiais) estabelecendo possíveis soluções ou expondo (com base em suposições) as privações da periferia.

A verdade é que vivemos em uma superficialidade tão crescente que não nos conhecemos mais, tampouco temos interesse em fazê-lo. Seres humanos tornaram-se componentes de um sistema que os classifica de acordo com os grupos aos quais são pertencentes e isso elimina a necessidade de lidar com especificidades de cada ser.

Somos números. Seja um CPF, uma senha na fila do banco ou dos estabelecimentos comerciais, o percentual que define uma situação a ser divulgada, o código de identificação em uma instituição na qual pertencemos ou, até mesmo, o numeral que define a quantidade de pessoas infectadas por uma doença. Números são fáceis de manipular e, superficialmente, não possuem peculiaridades, apenas facilitam a categorização e resolução de assuntos grupais.

Não me interprete mal, acredito que o uso dos números é essencial para o desenvolvimento de muitos campos científicos, tecnológicos e sociais, contudo devemos aprender a olhar além deles, assim como devemos dissolver a ideia de que são substitutos da identidade humana. Precisa haver uma harmonia, na qual os números servem a um propósito que facilita e auxilia, mas não representa e nem sobrepõe a importância dos indivíduos (algo que parece que esquecemos).

Fico imaginando uma vida como aquela apresentada nos filmes, na qual todos/as se conhecem e se tratam com carinho e respeito. As conquistas individuais e coletivas são lembradas e valorizadas integralmente, bem como as dores são compartilhadas e acalentadas como se fossem sentidas por cada um. O sentimento de empatia não precisa ser cobrado, pois constitui um dos pilares de construção daquela comunidade e não há competição de títulos e hierarquias. Em suma, há uma valorização dos seres, em vez de uma supervalorização dos números.

Compreendo que a grandeza e constituição das metrópoles nos impede de ter acesso a todas as pessoas, entretanto estou certa que muitos indivíduos sequer conhecem seus/suas vizinhos/as, os/as professores/as de seus/suas filhos/as, os/as próprios/as colegas de trabalho, as pessoas que atendem nos lugares que frequentam, dentre tantas outras formas de interações que nos permitem o acesso e proximidade.

Ninguém mais conhece o Sr. Zé da padaria, humilde e tranquilo pai de João e Ana, aquele que tem fascínio pelo jogo de um determinado time de futebol, bem como pelos cachorros que adotou. Entretanto, todos/as conhecem o CEO de uma famosa multinacional, ou o gerente de um Startup de sucesso, cujos perfis e trajetórias profissionais são expostos nos mais diversos veículos midiáticos como exemplos a serem seguidos.

Por que queremos conhecer a vida do CEO ou do gerente e não a do Sr. Zé? Porque somos números, pensamos em números, manipulamos números, algo que os altos cargos em grandes empresas lidam com maestria. Uma pessoa que eleva os números (especialmente de natureza financeira) está contribuindo para a manutenção do sistema tal como acreditamos que ele deve ser, sendo assim, ela se torna um cânone aos que desejam ser lembrados como operadores desse sistema numérico.

Se queremos mudanças e considerações de nossos anseios particulares e coletivos, por que compactuamos com a ideia de que somos categorizáveis e numeráveis? Além disso, se utilizamos números com o pretexto de facilitar a resolução dos problemas coletivos, por que não conseguimos amenizar as desigualdades e os índices de violência/intolerância? Talvez a resposta esteja precisamente na nossa visão numérica. Números não escutam as dificuldades e interesses de cada indivíduo, números não compreendem a subjetividade, números não expressam emoções e sentimentos.

Devemos começar a repensar quem somos e o que queremos, pois nosso contexto político, baseado na indiferença ou falta de interesse em conhecer a realidade dos/as cidadãos/ãs, é o reflexo da nossa frieza e descaso com aqueles que cruzam nossos caminhos. A partir do momento que nos preocuparmos em priorizar o nome no lugar do título, a vida no lugar dos bens materiais, o bem-estar social no lugar do individualismo e, sobretudo, os seres humanos acima do sistema numérico, teremos grandes mudanças nos mais diversos âmbitos de interação social. Precisamos aprender a olhar além dos números.

¹Doutoranda em Tecnologia e Sociedade pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). Bolsista da Capes.

Como citar:
QUAESNER, Giselle. Somos números. In: Nuevo Blog, 02 ago. 2020. Disponível em: https://nuevoblog.com/2020/08/02/somos-numeros/. Acesso em: ??

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