
Marcella Lopes Guimarães¹
Agradeço à equipe do Nuevo Blog, do Núcleo de Estudos da Violência Organizacional, vinculado ao Instituto Brasileiro de Pesquisas e Estudos Sociais (Ibepes), na pessoa da amiga Janaína More, o convite para trazer um aspecto do projeto de pesquisa que desenvolvo na UFPR, onde atuo como Professora do Departamento de História (DEHIS) e do Programa de Pós-Graduação em História (PPGHIS). Desde 2017, desenvolvo o projeto intitulado “Quando a narrativa encontra a poesia: a escrita biográfica no cancioneiro occitano”, mas este ano o projeto conta com a licença de um ano concedida a mim pelo DEHIS, com o apoio da Capes e com o acolhimento do Centre d’Études de Civilisation Médiévale (CESCM) na Universidade de Poitiers (França) para realizá-lo. O projeto ambiciona realizar a tradução completa das biografias dos trovadores de um perímetro cultural e geográfico entre a Catalunha e o Norte da Itália, passando pelo Languedoc[1], etapa já cumprida, e a análise de elementos dessas narrativas, das sociabilidades e das movimentações geográficas dos poetas.
Antes de prosseguir, alguns esclarecimentos importantes. No título do projeto, aparecem as palavras cancioneiro e occitano e, na explicação das ambições, aludo a trovadores. É preciso explicar o que são essas coisas. Começo pelo último termo: trovadores foram poetas que viveram durante a Idade Média, sobretudo entre os séculos XII e XIV, e que se exprimiram em línguas românicas, ou seja, línguas nascidas das transformações do latim falado em várias partes da Europa[2]. Eles inventaram uma poesia plural: lírica-amorosa, satírica e religiosa em vernáculo, que não cessa de encantar as gerações. Encantou já os mais próximos! Dante Alighieri (1265-1321) incluiu trovadores em sua Comédia, claro que os colocou no Inferno, afinal luxuriosos… Essa poesia concebida pelos trovadores foi cantada e dançada em diversas cortes e os poetas foram desde reis até simples jograis, artistas da performance que também quiseram compor. No final do século XIII, algumas cortes sentiram a necessidade de reunir essa poesia dispersa. Foi na Itália de Dante que se concentraram alguns dos esforços mais consistentes para reunir o conjunto, quando a maior parte dos trovadores já havia morrido. É por isso que Dante os conhece! A poesia foi reunida em manuscritos, alguns deles lindamente decorados e que, como contêm poemas (chamados de cantigas), são os cancioneiros[3]. A língua em que se exprimiram os trovadores do perímetro cultural que demarquei acima foi o occitano, uma língua falada em geral no sul da França medieval. Houve trovadores que se exprimiram em outras línguas, fora desse perímetro? Sim. Na Península Ibérica, por exemplo, o galego-português (língua-mãe do Português em que me expresso e em que você me lê) deu origem a uma obra extraordinária e múltipla também: a poesia galego-portuguesa[4].
Esses esclarecimentos são importantes porque no mundo do excesso em que estamos mergulhados não raro deixamos de prestar atenção em coisas que parecem muito distantes de nós: Idade Média, trovadores, occitano…, rapidamente trocadas pelas mil janelas de interesse acessíveis desde a ponta de nossos dedos. Um pesquisador, portanto, deve saber explicar seu objeto para convidar as pessoas a conhecê-lo e, se o projeto que desenvolve conta com recursos públicos na sua execução, esse gesto não é só uma gentileza, é uma obrigação. Ora, então o que os trovadores têm a ver a violência? Não cortejaram as mulheres com sua poesia?! Não inventaram a lírica amorosa em língua vernácula?!
A maior parte dos trovadores que conhecemos foi formada por homens[5] que sabiam se exercitar na guerra: cavaleiros. Alguns viraram jograis, porque não tinham dinheiro para continuar a se manter como cavaleiros. Vida cara… Mas mesmo tendo deixado o status, tinham a ciência e a experiência da guerra. Não raro voltavam aos campos de batalha convocados por seus senhores. Não havia exército regular na época em que viveram, então seu “serviço militar” era uma obrigação que desempenhavam a um senhor que os acolhia, que os alimentava e que os protegia. Outras relações. Em relação à segunda e à terceira questões com que terminei o parágrafo anterior, nem toda a poesia foi lírica-amorosa… O cancioneiro pessoal dos trovadores nos entrega a sua experiência nas cruzadas, na sátira e em outras lides.
Então esse breve texto se insere entre as preocupações dos pesquisadores do Núcleo de Estudos da Violência Organizacional porque evoca outras formas de violência no tempo, através de documentos traduzidos por mim para a Língua Portuguesa. Os documentos são biografias desses homens da guerra que acharam tempo para conceber uma poesia nova, como resistência aos constrangimentos a que estiveram sujeitos. As biografias dos trovadores são chamadas de vidas e foram incluídas em mais de 20 manuscritos como uma forma de apresentar os trovadores. Algumas são muito breves, poucas linhas; outras são mais cheias de situações dramáticas, risíveis e escabrosas.
Página de um cancioneiro digitalizado:

em que se pode ver em vermelho a biografia, a vida, do trovador Marcabru, que viveu no século XII. Em preto, os poemas. Material: pergaminho.
Nessa página, a gente pode ver uma iluminura que representa o trovador, de braços cruzados. Moço bonito (?) e malcriado…
O que está escrito em vermelho na imagem?
Marcabru foi da Gasconha, filho de uma pobre mulher de nome Marcabruna, como ele disse em seu cantar:
Marcabru, filho da senhora Bruna,
Foi engendrado sob uma tal lua
Que ele sabe como o amor se desfia
– Escutai!
Jamais amou alguma
E de nenhuma foi amado.
Foi um dos primeiros trovadores de que se recorda. Cantigas miseráveis e miseráveis sirventeses fez, em que diz mal das mulheres e do amor.
Conhecemos mais de 40 poemas de Marcabru e, levando em conta que ele viveu no século XII e que o cancioneiro K só foi feito entre o final do século XIII ou início do XIV, até admira que tenham sobrado tantos! A gente pode pensar, então, que Marcabru foi um trovador famoso. Muita gente talvez ainda se lembrasse da sua obra. Nessa versão da biografia do trovador, sobressaem seu pioneirismo, sua origem modesta, sua misoginia e o fato de ter composto um tipo de poema de crítica social: o sirventês. Destaco o fato de só sua mãe ser mencionada, em um contexto também misógino…, ou seja, esse fato denuncia a origem desprotegida do trovador. Mas a biografia de Marcabru tem outra versão, disponível no manuscrito A:
Marcabru foi lançado à porta de um rico homem e ninguém jamais soube por quem, nem de onde veio. E monsenhor Aldric Del Vilar o criou. Depois, esteve tanto com um trovador cujo nome era Cercamon, que começou também a trovar. Ele se chamava “Pão Perdido”, mas agora seu nome é Marcabru. Naquele tempo, não se chamava cantiga, mas tudo o que se cantava eram versos. Foi muito proclamado e conhecido por suas cantigas, temido por sua língua, pois foi tão maldizente que, ao fim, os castelões da Guiana de quem havia dito muito mal, aniquilaram-no.
Há muitos elementos interessantes no manuscrito A, a começar pelo abandono da criança recém nascida e uma alternativa de como a infância nessas condições podia ser vivida na época, à sombra e sob a proteção de alguém que se compadecia. Assim, a origem modesta do trovador aparece aqui em outra versão. Há outro elemento importante: a associação entre trovadores. Até hoje se discute se o trovador Cercamon (um nome que tem cara de apelido) teria sido o mestre de Marcabru ou se teria sido Marcabru o mestre… mas o fato é que na sociedade medieval as pessoas buscavam estar juntas, era inclusive mais seguro. Marcabru teria começado sua carreira com outro nome! Novamente o pioneirismo é aludido na biografia e um dado que interessa muito ao Nuevo: o desfecho.
Marcabru foi um trovador que circulou muito. Ele começou a sua carreira junto a um senhor poderoso, o duque Guilherme X da Aquitânia, pai da famosa Leonor da Aquitânia (1122-1204) duas vezes rainha (da França e da Inglaterra). Surpreendentemente, ele que fala mal de todo mundo, não fala mal desse protetor, aliás o homenageia, quando da morte do duque em peregrinação a Santiago de Compostela. Marcabru acompanha Leonor a Paris quando ela se casa e talvez tenha sido vítima dos ciúmes do primeiro marido, o rei da França Luís VII, por quem o trovador também parece não nutrir simpatia. Não fica junto ao casal real, mesmo porque eles partem na desastrosa 2ª cruzada (desastrosa para os cruzados e para esse casal, bem entendido), divorciam-se, uma confusão… Esteve na Península Ibérica e deve ter entrado em contato com o lirismo galego-português. Segundo uma pesquisadora da poesia occitana, Marcabru “forja ao longo de sua obra uma imagem de mal amado, de idealista incompreendido que aumenta a sua singularidade”[7]. Sua poesia é muito diferente da concebida pelo avô da rainha Leonor, o duque Guilherme IX da Aquitânia, o primeiro trovador conhecido. Este, um lírico e um devasso, sem qualquer contradição poética.
Quais são as fontes desses textos biográficos que traduzi? Ou seja, qual é a fonte do texto em vermelho da imagem acima, que reúne breves elementos da vida de um poeta insolente? O biógrafo se nutre da poesia do trovador! Vai construindo a partir dos poemas sua apresentação em prosa. Portanto, as biografias não são as melhores fontes para aferir o sucedido. Elas são as melhores fontes para evidenciar as relações entre poesia e narrativa e indicar expectativas da recepção do público. Elas reconfiguram a poesia do trovador na prosa para aproximá-lo do público que não podia mais conviver com os poetas. Se elas não mostram o que realmente aconteceu (algumas são mais fidedignas que outras), elas apresentam uma narrativa possível de ser aceita, ou seja, não dava para o biógrafo escrever coisas estapafúrdias! Ora, se Marcabru foi um trovador malcriado, que falava mal do amor, das mulheres, que condenava condutas em sirventeses, que colocava o dedo na ferida, ele poderia muito bem ter sido alvo da vingança dos atingidos… Daí a sua vida apresentar esse desfecho.
Para nós, mulheres e homens do século XXI, atravessados por uma crise sanitária que tolheu nosso movimento e as manifestações físicas dos nossos afetos, essas biografias dos trovadores são a manifestação de vivências ricas de experiências; elas entregam resistências, fracassos e sucessos. Elas são atravessadas de violência, como a possivelmente sofrida por Marcabru, que conhecia o poder de vingança do seu mundo e, mesmo assim, impôs a sua voz. Leio esses textos também como prova do poder da poesia, da narrativa, da arte em suma, diante dos horrores da vida, como existência empírica e histórica. Em uma das mais famosas biografias do cancioneiro occitano, a do poeta Jaufre Rudel, o biógrafo afirmou que o trovador só quis participar da cruzada para poder se encontrar com a Condessa de Trípoli. Então, para aquele público, foi possível admitir que um homem talhado pela espada fosse suficientemente louco de amor para nem ligar para uma campanha tão prestigiada, como as cruzadas, e querer mesmo é cair nos braços da mulher amada. Sabe como essa biografia termina? O poeta morre nos braços dela, claro! Não conheço melhor exemplo para a comparação realizada no Erotismo de Georges Bataille, entre a jouissance e a morte… A violência atravessa as vidas dos trovadores, como existência e como narrativa, apresenta constrangimentos graves a que trovadores foram submetidos por seus senhores e, no caso de trovadores que foram altos senhores, entre eles também, mas ela não tolheu o ato poético que extravasou em muito sua elocução até encontrar uma brasileira… muito menor que eles, mas desejosa de acolher essas narrativas na “hospitalidade lingüística”[8] da própria língua.
Referências e Notas:
[1] Sul da França.
[2] ZINK, Michel. Les Troubadours. Une histoire poétique. Paris: Éditions Perrin, 2013. p. 10.
[3] Lembrando que cancioneiro é o substantivo coletivo de poemas e canções.
[4] Conheça a base: “Cantigas Medievais galego-portuguesas”, disponível em: < https://cantigas.fcsh.unl.pt/> acesso em 13 de julho de 2020. Esse projeto excelente contém os poemas, dados biográficos dos poetas que se exprimiram em galego-português, glossário e manuscritos digitalizados.
[5] Mas houve mulheres trovadoras também!
[6] Disponível em < https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b60007960/f231.image> acesso em 13 de julho de 2020. É possível folhear o cancioneiro TODO! Uma experiência de encher os olhos!
[7] BERNARD, Katy. Les mots d’Aliénor. Aliénor d’Aquitaine et son siècle. Bordeaux: Éditions Confluences, 2015. p. 154. [tradução minha].
[8] Remeto o leitor ao trabalho de Paul Ricoeur: Sobre a tradução.
¹Doutora em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professora do Departamento de História (DEHIS) e do Programa de Pós-Graduação em História (PPGHIS).
Como citar:
GUIMARÃES, Marcella Lopes. As Vidas dos trovadores: narrativa e violência. In: Nuevo Blog, 04 ago. 2020. Disponível em: https://nuevoblog.com/2020/08/05/as-vidas-dos-trovadores-narrativa-e-violencia/. Acesso em: ??
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