
Eduardo Pinheiro Vianna¹
Regina Martinello Gonçalves Lins²
Neste trabalho será verificado o conceito de garantismo dentro do direito penal, de forma sucinta, em consonância com o atual estado de pandemia e as diversas normativas buscando a proteção das referidas garantias, ainda que de forma excepcional.
Luigi Ferrajoli[1] afirma que a função primordial do modelo garantista é a proteção dos direitos fundamentais do cidadão, buscando evitar excessos e ilegalidades nos processos, igualdade e respeito à dignidade humana.
A teoria garantista busca humanizar o processo penal, considerando o acusado como detentor de direitos e garantias fundamentais.
A teoria garatista de Ferrajoli traz dois princípios de extrema importância quando em análise proteção dos direitos e garantias fundamentais e a exigibilidade do cumprimento dos deveres fundamentais: 1) o princípio da presunção de inocência; 2) o princípio da necessidade e da lesividade.
O princípio da presunção da inocência se resume na premissa de que ninguém será submetido a um processo judicial sem uma prova concreta, sem a convicção fundamentada. Assim, em sentido lato, não há culpa sem juízo e, em sentido estrito, não há juízo sem que a acusação se sujeite à prova e à refutação, então há a presunção de inocência do réu até prova contrária exposta claramente e decretada pela sentença condenatória definitiva do condenado.
Ainda sobre o tema, o doutrinador afirma que esse princípio fundamental representa a escolha garantista a favor da preservação dos inocentes, mesmo que custe a impunidade de algum culpado.
O segundo princípio é o da necessidade e da lesividade, que, segundo Ferrajoli, “a lei penal tem o dever de prevenir os mais graves custos individuais e sociais representados por estes efeitos lesivos e somente eles podem justificar o custo das penas e proibições[2]”
O direito penal tem como função primordial a defesa dos bens jurídicos elencados pela sociedade de atos lesivos, ou seja, aqueles que atingem terceiros. Portanto, se um terceiro é prejudicado com este efeito lesivo decorrente de uma ação reprovável, recorre-se ao direito penal para a solução do impasse.
Em tempos normais, a proximidade do juiz para com o personagem que busca o garantismo penal abraçar, é garantido de forma ampla, fazendo-se o mesmo apresentar ao julgador para, exercendo ou não o seu direito de ser interrogado (posto que a todos é garantido o direito ao silêncio sem prejuízo de sua defesa), influenciar a formação da convicção daquele que irá traçar tecnicamente o destino da pessoa acusada de algum crime. Ou seja, além da participação na produção de provas (audiência de instrução), há o interrogatório na presença do julgador, garantindo a todos os protagonistas do processo penal a busca pelos fatos em si.
Neste contexto acima, observa-se que em decorrência do momento de pandemia enfrentado, o Poder Judiciário, seja através de normativas internas dos Tribunais, seja pelo Conselho Nacional de Justiça, não virou seus olhos às garantias definidas por Ferrajoli. A premissa da presunção da inocência e defesa de bens jurídicos, tanto da sociedade em geral, quanto do réu em um processo criminal, não podem ser descuidados por razões exteriores àquelas valoradas no mundo jurídico.
As limitações impostas pela pandemia acabaram por traças um cenário não antes enfrentado no mundo contemporâneo, e não seria diferente no Poder Judiciário.
As audiências de instrução vêm sendo realizadas, em regra, pelo meio virtual, e de outro modo não poderia ocorrer, pois o isolamento social de um lado, e a necessidade de continuidade dos processos criminais, especialmente aqueles envolvendo réus presos (em que evidente a primazia de destaque em razão da discussão sobre a liberdade do cidadão), acabam por não deixar outra opção ao Poder Judiciário, que a continuidade destes processos, mas atendendo aos cuidados indicados pelas organizações de saúde.
Algumas discussões surgiram destas normativas advindas dos órgãos do Poder Judiciário competentes, indicando eventuais problemas de ordem formal legislativa, seja de atribuição ou de competência[3].
Ocorre que, ao fixar a análise diante do garantismo penal e a necessidade de resposta célere àquele que aguarda em um estabelecimento prisional (em regra de situação precária) o seu julgamento, tendo a sua liberdade posta em jogo, o movimento dos órgãos do Poder Judiciário busca a efetividade do processo penal ante uma situação extraordinária de pandemia. E este panorama justifica as orientações e recomendações de tais órgãos em consonância com o isolamento social amplamente sugerido pelos órgãos de saúde pública.
De outro lado, inevitável será a discussão acerca da efetividade do garantismo penal pelas audiências virtuais e limitações físicas, uma vez que não haverá o aspecto pessoal-presencial entre os protagonistas do processo penal. Conforme já mencionado, o momento é de extraordinariedade, e os mecanismos encontrados são aqueles possíveis e em consonância com as diretrizes de saúde.
Porém, a possibilidade e o direito de influenciar o julgador, pela defesa e pelo defendido, de maneira direta e pessoal acaba sofrendo restrições de alto custo para direitos fundamentais (liberdade, devido processo legal, ampla defesa), o que ensejará estudos, debates e formação de convicções sobre tais ponderações entre preceitos fundamentais.
A ponderação de preceitos fundamentais não é matéria nova (já analisadas por autores de renome, como CANOTILHO, ALEXY, entre outros), mas há de se destacar aqui a lição de Daniel Sarmento e a busca pela visão unitária e harmônica da constituição e seus valores, “e caso a conciliação não seja possível, adota-se uma solução que promova a menor restrição a cada uma das normas em conflito, isto de modo a otimizar a tutela de bens jurídicos por elas protegidos”[4].
Os valores e princípios tratados aqui são de sensibilidade máxima, pois englobam a liberdade, o devido processo legal, a efetividade do processo, o contraditório e a ampla defesa, entre outros que certamente permeiam a questão do garantismo penal e a pandemia.
Soluções vêm sendo buscadas diuturnamente pelos órgãos judiciários responsáveis, e com sucesso ante os limites impostos por uma crise sanitária, mas novos questionamentos tendo por base a garantia a um processo justo e o aprimoramento de procedimentos eficazes na seara criminal, em especial, tendem a surgir, e a reflexão guia-se pelo aprimoramento dos valores e garantias constitucionais.
Referências e Notas:
[1] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006
[2] Idem, p. 426.
[3] https://canalcienciascriminais.com.br/o-cnj-e-as-audiencias-criminais-virtuais-na-pandemia/
[4] LINHARES, Marcel Queiroz. O método da Ponderação de Interesses e a Resolução de Conflitos entre Direitos Fundamentais. Revista da Faculdade de Direito da UFPR, v. 35, 2001, p. 219-244.
¹ Juiz de direito, Pós-graduado e especialista em Direito Tributário.
² Advogada, Pós-graduada em Direito Previdenciário.
Como citar:
VIANNA, Eduardo Pinheiro; LINS, Regina Martinello Gonçalves. Garantismo penal e pandemia. In: Nuevo Blog, 19 ago. 2020. Disponível em: https://nuevoblog.com/2020/08/19/garantismo-penal-e-pandemia/. Acesso em: ??
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