
Alerta! Caso você esteja procurando formas de aplicar o conceito de Antropoceno nos Estudos Organizacionais, é bastante provável que você saia com muito mais dúvidas do que respostas. Objetivo, com este texto, apresentar algumas perspectivas conceituais sobre o Antropoceno e, posteriormente, construir questionamentos acerca das dimensões conceituais, metodológicas e ontológicas do seu emprego nos Estudos Organizacionais. Portanto, este texto não se trata nem da apresentação de uma “caixa de ferramentas”, nem de um relato “fóbico” sobre um “novo” conceito.
Vamos iniciar com algumas notas conceituais acerca do Antropoceno, que é um conceito nascido nas Ciências Naturais e demarca uma nova era geológica, posterior a do Holoceno. As evidências de tal fenômeno são fundamentadas em conhecimentos da Estratigrafia, ramo da geologia que estuda os estratos das rochas a fim de compreender o processo de sobreposição das camadas. Dentre os processos relacionados a esta nova era, o que mais chama a atenção é o da mudança climática, que se soma ao do ciclo do carbono, alterações no nitrogênio, fósforo e sulfúrio e modificações no ciclo da água terrestre. Uma das hipóteses que tem se sustentado é de que esta alteração contou com um período de aceleração, no pós II-Guerra Mundial, resultante da atividade humana[i].
Dentre outras características, o Antropoceno opera de modo a colocar toda a humanidade de frente com a situação da mudança climática[ii]. Esta é uma das características hodierna dos problemas ambientais, isto é, eles são transcendentais (ver: (BECK, 2013[iii])). A fim de tratá-los a partir deste prisma, a Organização das Nações Unidas (ONU) tem assumido um papel central. Organizacionalmente, tem-se adotado o formato de assembleias, nas quais são discutidos os problemas de forma conjunta e apresentadas possíveis soluções. Um fato curioso sobre elas pode ser percebido a partir dos nomes adotados por essas reuniões. A de 1972, realizada em Estocolmo, chamava-se Conferência das Nações Unidades sobre o Meio Ambiente Humano. Já a de 1992, no Rio de Janeiro, denominou-se como Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (Eco 92). Em 2012, também na cidade brasileira, o encontro se chamou Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (Rio +20). Mais do que escolhas aleatórias, estes nomes revelam diversas formas de relacionamento com a natureza, bem como a própria instabilidade desta última (ver: (LATOUR, 2015[iv])). Em 1972, dissociava-se o meio ambiente da dimensão humana e apresentava sinais de que o “habitat humano” era o conteúdo importante a ser discutido. Vinte anos depois, o meio ambiente era intrínseco ao processo de desenvolvimento. Por último, em 2012, o conceito de Desenvolvimento Sustentável se tornou central. E aí, a próxima será a Conferência das Nações Unidas sobre o Antropoceno? Façam suas apostas!
A fim de apresentar alguns aspectos da vinculação do Antropoceno com os Estudos Organizacionais, focarei em um número especial de 2018 da Organization, importante revista científica da área. Os editores do número apontaram para as diferentes narrativas que podem ser mobilizadas para acessar o tema[v], investigações trataram das (novas) formas de relação dos territórios com os (novos) riscos ligados à mudança climática[vi], das expertises que produzem conhecimentos próprios para “tratar” do clima[vii], de formas alternativas organizacionais fundamentadas e produtoras de (outras) perspectivas éticas[viii], ou mesmo que permitam (re)imaginar as formas como relacionamos conosco e com a natureza[ix] além de preocupações que tangem às maneiras como teorizamos nos Estudos Organizacionais, em grande parte das vezes, alicerçadas na cisão entre cultura e natureza[x].
A partir de agora, apresentarei algumas reflexões advindas de investigações que realizei anteriormente, que versaram sobre organizações relacionadas com a temática ambiental. De início, quero chamar a atenção para incerteza inerente a nossa existência. Nossas tradições epistemológicas – ao menos de grande parte dos Estudos Organizacionais -, por mais funcionalistas ou críticas que sejam, conduzem-nos a construções de estabilidades categóricas fundamentadas na cisão entre natureza e cultura; herança, penso eu, das nossas perspectivas cartesianas. Neste sentido, ao admitirmos uma pretensa estabilidade ao Antropoceno, não estaríamos contribuindo para a produção de um nó semântico (“obrigatório”) em torno do conceito? Parecido com aquilo que aconteceu com a noção de “governança ambiental”, que fez com que o conceito se tornasse passagem obrigatória tanto no campo acadêmico como no prático, sofrendo assim um processo de “despolitização”. Algo visto também com a banalização do conceito de sustentabilidade (ver: (FONSECA; BURSZTYN, 2009[xi])).
Um segundo ponto está relacionado com a multiplicidade de escalas operadas pelo conceito. Um questionamento como “o que garante que uma preocupação ambiental formulada em uma assembleia da ONU seja também a preocupação de um território em específico?” é o suficiente para retratar este ponto. O conceito opera uma espécie de transposição “em cascata” das problemáticas em diversos níveis e coletivos. Diante disso, quais são os fenômenos produzidos por este conceito nos locais estudados? Como operacionalizarmos conceitos fundamentados em perspectivas transcendentais – como a maioria dos desenvolvidos nas assembleias da ONU – levando em conta as experiências dos indivíduos e dos coletivos? Isto é, como garantir um processo de escuta às experiências desenvolvidas nesses territórios sem, necessariamente, instituirmos uma estrutura conceitual e metodológico “de cima para baixo”? Nesse sentido, como as divisões analíticas com as quais estamos acostumados a trabalhar são reconfiguradas? E, até que ponto elas nos servem para este tipo de fenômeno?
Para encerrar este texto, saliento a urgência dos Estudos Organizacionais se preocupar com a temática ambiental. Sem dúvidas, o Antropoceno nos permite responsabilizar a espécie humana por contribuir com processos que tendem, em última instância, a extingui-la. Diante disso, busquei com este texto externar preocupações ligadas aos cuidados em trabalhar com este tipo de conceito, sobretudo, nas suas relações com as experiências locais, que se constituem a partir de contextos histórico-sociais próprios. Como um conceito advindo “de fora” (do território, do Brasil, das Ciências Sociais) “aterriza” nos locais e com que violência o faz? Isto é, até que ponto as investigações sobre as experiências locais serão capturadas pela adoção de tal conceito? Além disso, não deveríamos nos preocupar com um possível neocolonialismo ontológico, no qual o Antropoceno se torna uma forma de estabelecer e estabilizar (novos) conceitos a partir desta lógica descolada dos territórios? Por último: e nós, enquanto pesquisadores, até que ponto vamos adotá-lo como forma de garantir uma espécie de novidade e de legitimidade acadêmica (sobretudo, internacionalizada) às nossas inquietações?
[i] STEFFEN, W. et al.. The Anthropocene: conceptual and historical perspectives. Philosophical Transactions of the Royal Society A: Mathematical, Physical and Engineering Sciences, v.369, n.1938, pp. 842–867, 2011. https://doi.org/10.1098/rsta.2010.0327
[ii] CHATEAURAYNAUD, F.; DEBAZ, J.. Aux bords de l’irréversible. Sociologie pragmatique des transformations. Paris: Éditions Pétra, 2017.
[iii] BECK, U.. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade (2nd ed.). São Paulo: Editora 34, 2013.
[iv] LATOUR, B.. Face à Gaïa. Paris: Éditions La Découverte, 2015.
[v] WRIGHT, C. et al.. Organizing in the Anthropocene. Organization, v.25, n.4, pp. 455–471, 2018. https://doi.org/10.1177/1350508418779649
[vi] WISSMAN-WEBER, N. K.; LEVY, D. L.. Climate adaptation in the Anthropocene: Constructing and contesting urban risk regimes. Organization, v.25, n.4, pp. 491–516, 2018. https://doi.org/10.1177/1350508418775812
[vii] LEDERER, M.; KREUTER, J.. Organising the unthinkable in times of crises: Will climate engineering become the weapon of last resort in the Anthropocene? Organization, v.25, n.4, pp. 472–490, 2018. https://doi.org/10.1177/1350508418759186
[viii] BEACHAM, J.. Organising food differently: Towards a more-than-human ethics of care for the Anthropocene. Organization, v.25, n.4, pp. 533–549, 2018. https://doi.org/10.1177/1350508418777893
[ix] ROUX-ROSIER, A.; AZAMBUJA, R.; ISLAM, G.. Alternative visions: Permaculture as imaginaries of the Anthropocene. Organization, v.25, n.4, pp. 550–572, 2018. https://doi.org/10.1177/1350508418778647
[x] KALONAITYTE, V.. When rivers go to court: The Anthropocene in organization studies through the lens of Jacques Rancière. Organization, v.25, n.4, pp. 517–532, 2018. https://doi.org/10.1177/1350508418775830
[xi] FONSECA, I. F. da; BURSZTYN, M.. A banalização da sustentabilidade: reflexões sobre governança ambiental em escala local. Sociedade e Estado, v.24, n.1, pp. 17–46, 2009. https://doi.org/10.1590/S0102-69922009000100003
Gustavo Matarazzo Rezende é Mestre e Doutor em Administração pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Pós-doutorando pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Como citar:
REZENDE, Gustavo Matarazzo. Antropoceno e Estudos Organizacionais: notas e preocupações conceituais, metodológicas e ontológicas[1]. In: Nuevo Blog, 23 ago. 2020. Disponível em: https://nuevoblog.com/2020/08/23/antropoceno-e-estudos-organizacionais-notas-e-preocupacoes-conceituais-metodologicas-e-ontologicas1/. Acesso em: ??
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