
Stefânia de Castro Helmold¹
Minha orientadora me disse, uma vez, que grandes pesquisas costumam vir de dores pessoais. No início da minha graduação, o professor falou que não queria mulheres na sala de aula porque éramos incapazes de aprender cálculo. Foi a minha primeira experiência com assédio de gênero na Academia. De outro docente, ouvi que deveríamos abraçar a oportunidade de estar na universidade para encontrar bons maridos. Também já fui vítima de assédio sexual num evento acadêmico. Minha orientadora, quando estudante de mestrado, escutou de um professor que o curso não era lugar para ela; seu lugar seria nas passarelas. Mas essas histórias não são diferentes da história das outras mulheres que me relataram suas situações de assédio e violência na pesquisa de que trata este texto. O estudo sobre assédio nas instituições de ensino superior (IES) nasceu assim, numa roda de conversa entre amigas em que todas tinham algum caso relacionado a vivências acadêmicas para relatar. Supus então que a violência era uma constante no cotidiano das universitárias e isso se tornou meu tema de pesquisa. Ao escolhê-lo, ouvi de um professor que estaria cometendo o que ele chamou de suicídio acadêmico, pois havia assuntos que deveriam ser deixados de lado e, depois disso, nenhum professor se disporia a me orientar mais. Nesse momento, tive certeza de que estava no caminho certo.
Um estudo do Instituto AVON e Data Popular (2015) mostrou que 56% das participantes já haviam vivenciado alguma situação de assédio na universidade e 73% delas conheciam algum caso. Isso confirmou minhas suspeitas de que se tratava de algo mais frequente do que parece. Contudo, investigando a literatura percebi que o Brasil produz muito pouco a respeito do assunto e que a maioria dos trabalhos disponíveis tem origens anglo-saxônicas. Esse silêncio nacional não chega a surpreender, numa sociedade em que o assédio é minimizado, naturalizado ou encarado com humor. Nossa incapacidade de lidar com a violência é patente, como mostra o caso recente de uma criança de 10 anos, cuja gravidez – fruto de um crime sexual – foi interrompida sob incentivos e ataques da opinião pública (G1PE, 2020; ISTOÉ, 2020). Mas é exatamente a forma como lidamos com o assédio que evidencia que alguém precisa estudá-lo e conhecê-lo, e fazer isso, embora tenha sido doloroso, trouxe ensinamentos que valorizo e quero compartilhar. Assim, este texto tem por objetivo dividir e trazer à discussão aspectos inerentes ao meu processo de pesquisar a violência.
Inicialmente, busquei entre os colegas pessoas que conversariam sobre os assédios sofridos, mas poucas se dispuseram a ser entrevistadas. Então disponibilizei um formulário aberto online, sem qualquer identificação, que permitisse aos interessados relatar suas histórias. Em pouco mais de dez dias recebi 2.525 respostas e foi preciso encerrar a coleta de dados, por motivos óbvios. Nesse ponto, algo ficou claro: se o receio de falar sobre experiências de violência existe, a necessidade de fazê-lo também. Assim, escolher o instrumento que permita ao pesquisador obter as informações necessárias, garantindo às pessoas a segurança de que elas precisam para tratar de algo íntimo e muitas vezes traumático, é um passo fundamental de uma pesquisa de qualidade. Como pesquisa de qualidade, entendo aquela cuja preocupação não se esgota em alcançar os resultados desejados, mas a que coloca como prioridade fazê-lo de modo respeitoso e ético para com aqueles que são a razão do estudo: nesse caso, as vítimas da violência. Se, inicialmente, um formulário online não parecia a técnica mais rica ou robusta para uma investigação como a que empreendi, foi a que, nesse caso, se mostrou mais apropriada. A melhor metodologia parece, portanto, a que compreende o sujeito de pesquisa em sua complexidade, não coincidindo necessariamente com a mais celebrada pela comunidade científica. O número de respostas mostrou que a decisão foi acertada, e o cuidado em minimizar o risco de ferir ainda mais quem já foi machucado guiou todas as etapas do estudo. Pedir que alguém relate sua dor é fazer com que essa pessoa a vivencie novamente, e cabe ao pesquisador ser sensível a esse momento.
A fase da análise foi consideravelmente difícil, sobretudo em função das referências disponíveis, predominantemente norte-americanas e europeias, que não conversavam com os dados obtidos. Falar sobre violência num contexto latino-americano é diferente de fazê-lo nesses outros países. Culturalmente, agressões costumam ser minimizadas, naturalizadas e institucionalizadas em todos os âmbitos da vida cotidiana. Além disso, o assédio é uma violência com forte caráter de gênero (TEIXEIRA e RAMPAZO, 2017; TEIXEIRA et al., 2018; FREITAS, 1996; 2001). Numa sociedade machista, patriarcal e marcada pela misoginia, como a brasileira, são frequentes falas como “não foi nada” ou “ninguém acreditaria em mim”. Assim, foi preciso construir uma lente de análise que considerasse questões culturais e interseccionais, já que o arcabouço teórico existente não alcançava a profundidade dos relatos. Aqui mais um ensinamento ficou evidente: fazer pesquisa na América Latina é rico e particular, e é hora de desenvolvermos teorias e metodologias que nos compreendam, sejam adequadas às nossas realidades e contemplem a pluralidade das vivências regionais (SOUZA, SILVA e YOSANO, 2019; SAUERBRONN, AYRES e LOURENÇO, 2017).
Outra dificuldade deste processo foi o fato de eu ter sido alvo de assédio, como já mencionado – o que, se por um lado me aproximou da realidade investigada e talvez tenha facilitado a compreensão do fenômeno -, por outro implicou reviver dores pessoais. Piedade (2017) criou um conceito que, embora não se aplique efetivamente ao contexto, traduz o que senti: dororidade. Para a autora, as mulheres negras desenvolvem laços de solidariedade ancoradas nas dores historicamente silenciadas que partilham. Reconhecer minhas dores no sofrimento dos sujeitos da pesquisa que realizava foi um exercício interessante. Me emocionava, sofria junto e precisei trabalhar questões íntimas para que esse sentimento não atrapalhasse ou impedisse a análise dos dados. Aliviou-me pensar que “[não há] enunciado livre, neutro e independente. […] Não há enunciado que não suponha outros; não há nenhum que não tenha, em torno de si, um campo de coexistências” (FOUCAULT, 1986). Abandonei, assim, a vã expectativa de gerar um texto em que não expressasse minha subjetividade. Então me ative ao fato de ver a pesquisa como um processo de investigação baseado na empatia e como prática social em que me engajo. Considerei seu rigor relacionado não à ideia de mensurar com objetividade, mas ao processo de explicitar minha posição e como ela afeta o estudo (SPINK e MENEGON, 2000).
Por último, mas não menos importante, me sinto responsável por aquilo que estudei. Cada uma das falas e cada memória foi confiada a mim, talvez na esperança de que, discutindo as situações violentas às quais os sujeitos foram expostos, eu pudesse fomentar um debate sobre o tema, permitindo conhecer melhor detalhes de como elas acontecem. Esse é, sem dúvida, um passo essencial para se transformar essa realidade. Junto à minha orientadora, estamos pensando em formas como poderia oferecer aos participantes da pesquisa algum retorno. O estudo está sendo apresentado em congressos e publicado em artigos (HELMOLD e ITUASSU, 2019; HELMOLD, ITUASSU e OLETO, 2019), mas não é o bastante. Planejamos que isso se torne um projeto de extensão e nos organizamos para produzir um material sobre assédio na universidade, já que informar é um dos modos de combatê-lo. Esse espaço que o NUEVO oferece é outra grande oportunidade de dar visibilidade a violências que muitos admitem que acontecem, mas poucos se interessam em se aprofundar.
Tudo isso, no entanto, ainda parece insuficiente, se não ficar claro que as instituições de ensino precisam se organizar para desenvolver mecanismos de denúncia, fiscalização e punição para inibir a violência cometida entre seus muros. Esse é um movimento que exige o posicionamento de diversos atores. Demanda também uma mudança cultural mais ampla, que pode e deve começar na Academia. Esforços para combater as várias formas de violência presentes no dia a dia dos estudantes, vítimas constantes nos relatos da pesquisa, são fundamentais para que se garanta um ambiente de aprendizado saudável para todos. Esse ambiente é condição essencial para a formação de profissionais capazes de ser empáticos e solidários à figura do outro, de respeitar colegas em situação de maior vulnerabilidade e de resistir a práticas que não tenham como base a dignidade humana. É isso o que toda IES deve buscar formar: cidadãos críticos e éticos. Como esperar que o assédio e a violência não existam nos ambientes de trabalho se os reproduzimos diariamente nos nossos ambientes educacionais?
* Esse texto foi escrito com a colaboração da professora Cristiana Trindade Ituassu que, se não o assina, com orgulho orientou a pesquisa que o inspira e divide a autoria dos artigos que originou.
Referências Bibliográficas
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¹ Graduada em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Como citar:
HELMOLD; Stefânia de Castro. Assédio na Academia: perspectivas sobre o processo de pesquisar a violência. In: Nuevo Blog, 25 ago. 2020. Disponível em: https://nuevoblog.com/2020/08/25/assedio-na-academia-perspectivas-sobre-o-processo-de-pesquisar-a-violencia/. Acesso em: ??
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