
Rossi Henrique Chaves¹
É recorrente no discurso político a utilização do planejamento governamental como uma técnica neutra, na verdade ele sempre fez parte da estratégia política de diferentes governos, mesmo com variações. Este, recorrentemente, é posto como a alternativa ao político, pela eficácia ou mesmo pelo seu caráter de cientificidade. No presente texto procuramos caminhar para além da aparência desse fenômeno para entender sua real funcionalidade.
Na análise do desenvolvimento da produção capitalista brasileira é necessário destacar o seu caráter subsumido e dependente. Marini (2000[i]) destaca que desde a produção colonial baseada na mão-de-obra escravizada no Brasil desenvolveu-se uma economia de exportação vinculada às necessidades do mercado mundial. No bojo do desenvolvimento do capitalismo brasileiro, o Estado sempre atuou como agente importante, garantindo ganhos e reposições de capital para as classes burguesas, sejam as classes latifundiárias na política cafeeira da década de 20 ou ainda a partir da década de 1930 como principal financiador das classes industriais[ii]. Neste quadro, o golpe militar de 1964 acentuou todas essas tendências da economia brasileira, e ainda garantiu o controle do aparelho repressivo do Estado.
O sociólogo Octávio Ianni (2019) aponta que, no período dos governos militares, o discurso do planejamento como técnica neutra foi uma estratégia política bastante utilizada. Naquele caso, esse discurso sempre foi utilizado como ferramenta ideológica para aperfeiçoar o modelo político ditatorial ao passo que o alinhamento com as demandas do empresariado era ampliado por meio de políticas de arrocho salarial, prisão e tortura de líderes sindicais e camponeses, a tal ponto que o “planejamento governamental ganhou conotação de uma força produtiva complementar, ao lado da força de trabalho, capital, tecnologia e divisão do trabalho”[iii].
Nesse cenário, programas resultantes do planejamento governamental, como o “Programa Estratégico de Desenvolvimento” (1968-1970), “Metas e Bases para a Ação do Governo” (1970-1971), “I Plano Nacional de Desenvolvimento” (1972-1974), foram formulados como parte das estratégias para o desenvolvimento nacional capitaneado pelo milagre brasileiro. O próprio, assim chamado, milagre brasileiro, revelou-se enquanto movimento do capital imperialista enquanto forma de sucção do valor resultante da superexploração do trabalho. Os planejamentos dos governos militares atuaram em amplas frentes para avanço do capital-imperialismo, a citar expansão latifundiária na região Amazônica, incentivo a expansão da atividade mineradora, também atuou fortemente na disputa ideológica da classe trabalhadora, principalmente no anticomunismo. O período que compreende aos governos militares, sem dúvidas, foram um dos que mais contribuíram para a crença na tecnocracia estatal, programas que eram divulgados como sendo resultado de um corpo técnico altamente capacitado, mesmo porque suas ações puderam ser tocadas à revelia do interesse das classes trabalhadoras assalariadas.
No período recente que compreende especificamente ao governo Bolsonaro, o discurso do planejamento como técnica neutra retornou (o que não significa que esteve ausente) com algumas características similares a esta que discutimos previamente, capitaneado pelo retorno dos próprios militares para a composição de cargos de confiança e ministerial do governo, mas que não se restringe a eles. Um levantamento promovido pelo Tribunal de Contas da União (TCU) estimou que atualmente são mais de seis mil militares da ativa e da reserva atuando em cargos civis no governo.
Não faltam exemplos de como essa retórica novamente atua como forma de promoção do capital-imperialismo. Assistimos ao avanço da degradação ambiental e do latifúndio em regiões como a Amazônia e Pantanal, ao passo que é promovido o esvaziamento e degradação do IBAMA, contando com a participação ativa do Ministro Ricardo Salles e de seu proclamado corpo técnico altamente qualificado. No terreno da economia, o Ministro Paulo Guedes é tomado como aquele que domina todas as técnicas econômicas, sendo o agente capaz de promover a modernização econômica do Brasil, modernização que já tem revelado por quais ombros irá se sustentar: novamente o da classe trabalhadora. É assim que discussões que envolvem, por exemplo, a PEC 241/55, vulgo PEC do teto, tem sido tocadas de maneira a não colocá-la em questionamento em momento algum, pois a PEC é tomada como o que garantirá a vitalidade das contas públicas brasileira. Nem mesmo a miséria social crescente costuma ser suficiente para explicitar as funcionalidades de medidas como esta. [Leia-se: estamos mais preocupados com as metas fiscais em prol do capital financeiro internacional]
Os retrocessos promovidos contra a classe trabalhadora são diários, a citar: a reforma trabalhista, e posteriormente da previdência; retirada progressiva de recursos de saúde e educação; e, sucateamento da pesquisa. Em meio a uma pandemia, o escolhido para o enfrentamento desta foi um general da ativa, Eduardo Pazuello. No que diz respeito a pandemia e as de políticas de saúde adotadas, já se passaram o número de cento e dez mil mortes (segundo maior número dentre todos os países) e mais de dois milhões de infectados, são condizentes com uma estratégia negacionista e displicente com a saúde do povo, ao passo que convergente com os interesses de uma burguesia que vê neste cenário um cenário de perdas financeiras que precisam ser repostas a qualquer custo. O reforço do caráter neutro e técnico do planejamento também é central na disputa ideológica, pois sugere como inquestionáveis ações que são permeadas de intencionalidades, sendo tratadas como tendências políticas comunistas aquelas que não se preocupam com a técnica. Ressaltamos que não foi a falta de planejamento, ou de um corpo técnico especializado ocupando funções do governo, que nos trouxe até aqui, é justamente o contrário. É a existência de um planejamento estatal orientado segundo interesses do capital-imperialismo e a ele subsumido que corroborou e corrobora para o agravamento da miséria social brasileira.
Qualquer proposta de planejamento governamental tocada por algum governo não pode ignorar questões como o fato de que a dívida pública é uma política econômica governamental que data desde os primórdios do capitalismo. No caso brasileiro, por exemplo, no cenário recente, os gastos federativos com os juros da dívida foram por alguns momentos superiores ao de previdência e, quando não, manteve proporção próxima. Outro fato que deste se desdobra é de que, entre os principais detentores dos títulos públicos federais, podemos encontrar instituições financeiras, fundos de investimento e fundos de pensão, todas elas operando a partir de capitais internacionais.
Planejamentos governamentais podem ser analisados como simples estratégia retórica, assim como um conjunto de princípios que não necessariamente refletem a ação concreta. Isto se reflete em uma tendência apontada por Oliveira (1981, p. 15[iv]), em que “quase tudo que se escreveu sobre planejamento termina por desembocar em ‘modelos’, que se pretendem de generalizada aplicabilidade”. É preciso ressaltar que estes são formas, entre outras, de se rastrear as funções do Estado e de suas mediações em diferentes estágios da produção capitalista e do capital imperialista. Qualquer forma de organização estatal, certamente, estará dotada da função planejamento, mas a especificidades dessa função no Estado capitalista está relacionada com a função que esta cumpre nos estágios da acumulação, garantindo a manutenção e ampliação da taxa de lucro, assim como da extração de valor para os setores da burguesia mediante exploração do trabalho. A respeito disso Oliveira (1981, p. 24) menciona que “o planejamento num sistema capitalista não é mais que a forma de racionalização da reprodução ampliada do capital”. Em outras palavras, no capitalismo, o planejamento governamental é subsumido e orientado pelo movimento de acumulação ampliado, sem a sua aparência de neutralidade técnica, revela-se assim enquanto guia das ações políticas estatais segundo as necessidades do capital.

Legenda: Ocorreu no dia 22/08/2020, em meio a pandemia, ação policial com finalidade de reintegração de posse do Quilombo Campo Grande, localizado no município de Campo do Meio-MG, foram cerca de 400 famílias despejadas de uma terra ocupada produtivamente a mais de 20 anos.
Referências:
[i] MARINI, Ruy Mauro. Dialética da dependência. Petrópolis: Vozes, 2000.
[ii] GORENDER, Jacob. A burguesia brasileira. São Paulo: Editora brasiliense, 1981.
[iii] IANNI, O. A ditadura do grande capital. São Paulo: Expressão popular, 2019, p. 29-30.
[iv] OLIVEIRA, F. de. Elegia para uma re(li)gião: SUDENE, Nordeste: Planejamento e conflito de classes. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.
¹Mestre e Doutorando em Administração – CEPEAD | FACE | UFMG. Professor Substituto do Departamento de Administração da UFJF-GV.
Como citar:
CHAVES, Rossi Henrique. Notas contra o discurso da neutralidade técnica das funções do planejamento governamental. In: Nuevo Blog, 02 set. 2020. Disponível em: https://nuevoblog.com/2020/09/02/notas-contra-o-discurso-da-neutralidade-tecnica-das-funcoes-do-planejamento-governamental/ . Acesso em: ??
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