
Angelo Brigato Ésther¹
Ao qual agradeço, o convite do NUEVO para escrever sobre a universidade não poderia ser mais oportuno. Em 07 de setembro desse ano, a UFRJ, por alguns historiadores considerada a primeira universidade pública do Brasil, completou cem anos de existência! Outras vieram depois, e, atualmente, temos 68 universidades federais, nas quais estuda cerca de um milhão de estudantes de graduação e pós-graduação, segundo a Andifes[i].
À primeira vista, a pergunta-título pode causar estranhamento, não fazer sentido. Afinal, por que alguém temeria a universidade? No entanto, é o que parece se passar nos nossos dias no País, na medida em que tem sido “atacada” – algo bem distinto de “criticada”, o que é imprescindível – e desmerecida, de forma mais assustadora, recentemente, pelo então ministro da educação, quando a acusa de ser local de balbúrdia, de plantação de maconha e produção de anfetamina, bem como quando promove cortes e desinvestimentos, dificultando sua atuação. Reflexo do desmerecimento, ainda, é o fato de já termos tido quatro ministros da educação em cerca de dezoito meses de mandato governamental. Mas, onde reside o medo da universidade?
A meu ver, a universidade talvez seja o único espaço em que o pensamento único não tem lugar! Talvez o único ambiente em que a liberdade de pensamento e de reflexão crítica pode ser exercido, onde há a possibilidade de problematizar, de fazer perguntas, de levantar polêmicas, de errar e de testar, onde ideias, teorias, pontos de vistas e concepções contrastantes e contraditórias podem conviver, cujo objetivo é buscar a compreensão da realidade, sob diversas perspectivas, de modo tornar a vida humana mais justa, inclusiva, saudável, confortável e segura. Daí a formação de profissionais e pesquisadores em todas as áreas de conhecimento e campos de atuação. Ou não?
Num texto provocativo, Vladimir Safatle[ii] afirma que uma das maiores mistificações de nossa época é insistir na relação entre formação e empregabilidade uma vez que a universidade não pode garantir ascensão social ou sobrevivência, a não ser em alguns casos, enquanto os setores fundamentais da economia mundial e os atores reais da economia sabem que podem viver sem a universidade, com as elites formando seus filhos nos países centrais. Ao mesmo tempo, pontua o que ele chamou de demissão política dos intelectuais, na medida em que eles, em larga medida, saíram da cena política da vida nacional, por diversas razões.
Tal cenário não ocorre por acaso. No capitalismo financeiro, a educação é transformada em serviço, perdendo seu estatuto de direito social[iii] e de bem público, favorecendo o crescimento do “edubusiness” ou “edunegócios”, sobretudo por meio de capital especulativo no setor educacional, com a entrada de grupos nacionais e internacionais que passam a receber aporte de fundos públicos como o Fies e o PROUNI, garantindo boa parte de sua rentabilidade. Além disso, think tanks e instituições privadas, como a Open Society Foundation, Fundação Lemann, Instituto Unibanco, dentre outros, têm defendido reformas estruturais e influenciados decisões de políticas públicas educacionais[iv].
Some-se a isso, atualmente no País, a vaga negacionista e uma orientação política de cunho neofascista (conservadorismo, anticomunismo, uso de teorias conspiratórias, visão de mundo baseada em amigos e inimigos, defesa da família tradicional, dentre outros traços), que se vale recorrentemente de fake news, construindo uma narrativa que vê a universidade como um antro de “esquerdopatas” – sobretudo nas ciências humanas –, que ganham salários exorbitantes e visam implantar o comunismo no Brasil.
Nesse sentido, mesmo num contexto de pandemia por conta da Covid-19, manifestações de cariz neofascista (ligados ao neointegralismo) associam o vírus à ideologia comunista. Aqui, importa destacar que tal visão de mundo implica, necessariamente, posturas e ações autoritárias, intolerâncias, e atitudes antidemocráticas, nas diversas esferas da vida social[v].
Em outras palavras, parece haver a tentativa de imposição de um pensamento único, infenso à crítica e hostil ao contraditório. No campo econômico, implica a naturalização do capitalismo neoliberal como o único “modelo” possível, pois seria supostamente o melhor, na medida em que, sendo de cariz “liberal”, permite aos indivíduos serem livres para intercambiar o que quiserem da forma como lhes convier. No campo religioso, tem implicado o desprezo por outras matrizes, especialmente as de origem africana. No campo político, não ser de “direita” implica quase necessariamente ser comunista ou petista. No campo da sexualidade, a heteronormatividade é a regra. Na educação, especialmente no caso da universidade, qualquer crítica ao pensamento único recebe a pecha de “doutrinação marxista”.
Ora, é precisamente aí que reside a possibilidade da universidade favorecer a transformação social. Não apenas por meio do desenvolvimento de tecnologias, de produtos, ou mesmo da vacina ou tratamento para o novo coronavírus que assola o mundo todo nesse momento. É quando a universidade incomoda, questiona, tensiona, aponta contradições, desenvolve argumentos que sua contribuição pode ser maior. Ou, como diz Safatle, quando “cria problemas” é que ela é mais efetiva. Na concepção fascista, um criador de problemas é um sujeito indesejável, pois coloca em xeque o estabelecido. Na concepção democrática, é imprescindível, pois é pelo contraditório que se pode alcançar soluções e alternativas. Por vezes, fazer as perguntas certas é melhor do que ter respostas prontas!
A liberdade de pensamento e de chegar à verdade é um direito da humanidade, como bem aponta Paul Ricouer[vi]. É por essa e outras razões que a universidade precisa de liberdade acadêmica, caso contrário ela se constituirá num mero adendo de luxo de corporações ou do próprio Estado. Não é por acaso que o projeto “Escola sem partido” foi criado, pois visa impedir a crítica qualificada. Aí reside o medo da universidade. Parafraseando Milton Santos[vii] quando se refere à globalização, reu diria que o pensamento único, além de antidemocrático, é uma fábula e uma perversidade. Mas é, sobretudo, uma forma de violência.
Vida longa à universidade!
Referências:
[i] ANDIFES. Institucional. Disponível em http://www.andifes.org.br/institucional/andifes/. Acesso em 04 out. 2020.
[ii] SAFATLE, Vladimir. O que resta da universidade? Revista Cult, 8 de setembro de 2017. Disponível em https://revistacult.uol.com.br/home/vladimir-safatle-o-que-resta-da-universidade/. Acesso em 08 jul. 2020.
[iii] CHAVES, Vera Lúcia Jacob. O ensino superior privado-mercantil em tempos de economia financeirizada. In: CÁSSIO, Fernando (Org.). Educação contra a barbárie. São Paulo: Boitempo, 2019.
[iv] AVELAR, Marina. O público, o privado e a despolitização nas políticas educacionais. In: CÁSSIO, Fernando (Org.). Educação contra a barbárie. São Paulo: Boitempo, 2019.
[v] GONÇALVES, Leandro Pereira, CALDEIRA NETO, Odilon. O fascismo em camisas verdes. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2020.
[vi] RICOUER, Paul. Prefácio. In: DRÈZE, Jaques; DEBELLE, Jean. Concepções da universidade. Fortaleza: Edições da Universidade Federal do Ceará, 1983.
[vii] SANTOS, Milton. Por outra globalização. Rio de Janeiro: REcord, 2000
¹Doutor em Administração pela UFMG. Estágio pós-doutoral em História no CEIS20 – Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX, da Universidade de Coimbra, Portugal. Professor e Coordenador do Mestrado Acadêmico em Administração da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Líder do Socius Grupo de Pesquisa sobre a Instituição Universitária.
Como citar:
ÉSTHER, Angelo Brigato. Quem tem medo da universidade? In: Nuevo Blog, 06 out. 2020. Disponível em: https://nuevoblog.com/2020/10/06/quem-tem-medo-da-universidade/ . Acesso em: ??
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