
Aline dos Santos Barbosa¹
Marcello Romani-Dias²
Tânia Modesto Veludo-de-Oliveira³
A América Latina é uma das regiões mais violentas contra mulheres, com altos números de estupros, assédios e assassinatos por causa do gênero[i]. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2019[ii], em 2018 foram registrados 4.107 casos de homicídios de mulheres no Brasil e 66.041 ocorrências de estupros de mulheres. Cerca de 70% das vítimas são crianças e adolescentes e estima-se que 90% dos agressores são homens próximos a vítima, tais como: pais, padrastos, namorados ou amigos.
Para compreendermos esse fenômeno, podemos utilizar as lentes da teoria da objetificação e da comodificação de seres humanos. Para essa literatura, pessoas objetificadas são vistas como um objeto e, como consequência disso, é possível que seus corpos ou partes deles sejam transformados em uma commodity (mercadoria), ou seja, algo com valor de troca realizado. Na literatura esse processo é chamado de comodificação de pessoas[iii].
Exemplos de comodificação de seres humanos ou de partes do seu corpo, incluem: o tráfico de órgãos[iv], o sistema artificial de reprodução humana por meio da compra e venda de óvulos e espermatozoides, as transformações cirúrgicas com o intuito de atingir corpos perfeitos, o processo de trabalho em que trabalhadores têm sido referidos como “mãos”[v] e a comercialização de serviços sexuais[vi].
O corpo da mulher pode ser objetificado e comodificado em diversos contextos, como por exemplo, quando um homem paga por serviços sexuais (prostituição ou pornografia), pois está tornando o corpo daquela mulher uma commodity sexual e se colocando no papel de cliente daqueles serviços[vii]. A sexualidade feminina, juntamente com seu corpo, são altamente comodificados em filmes, propagandas, páginas da internet, clubes de strip, serviços telefônicos sexuais, terapias sexuais, sex-shops, casa de swing e casas noturnas no geral[viii]
Mulheres nessa situação não são valorizadas por suas características humanas, por isso estão sujeitas a sofrerem atos de violências físicas e de cunho sexual, ameaças, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, perseguição, chantagem, entre outros que afetam o seu direito de ir e vir, pois sua saúde, integridade física e bem-estar também perdem relevância o que abre espaço para que sejam vítimas de diversos tipos de violência[ix].
Ao investigarmos o fenômeno da objetificação e da comodificação de mulheres no contexto universitário dos cursos de administração, destacamos algumas de suas consequências negativas, tais como: a autobjetificação em seus aspectos pessoais e profissionais demonstrada por relatos de incertezas em relação a seus corpos, no exercício das atividades de liderança estudantil e a escolha da carreira profissional[x].
De acordo com o estudo de Slater e Tiggermann (2002[xi]) que testou a teoria de objetificação proposta por Fredrickson e Roberts (1997[xii]), jovens mulheres enfrentam graves consequências decorrentes da objetificação de seus corpos, tais como, ansiedade com sua aparência e vergonha do próprio corpo. Consequentemente, demonstram excessiva preocupação com a aparência física e a busca pelo corpo perfeito, o que tem acarretado um aumento do número de cirurgias plásticas femininas, implantes de silicone e cirurgias íntimas, por exemplo, para redução de lábios ou estreitamento do canal vaginal[xiii].
Além disso, notamos que, estas jovens universitárias podem ter, não apenas partes de seus corpos objetificados e comodificados, mas também sua sexualidade, moralidade e sentimentos transformados em objetos controlados por rapazes que estudam na mesma faculdade que elas. Esse tipo de situação implica, entre outros aspectos, como a interferência da sua liberdade de movimento, a escolha das roupas que vão vestir, com quem vão interagir, o que e quando comer, a forma de sentir prazer e até quando terão sua sexualidade explorada sem seu interesse ou consentimento.
Além disso, quando seus sentimentos e moralidade são objetificados e comodificados, o que a mulher sente sobre si mesma, sua dignidade, seus interesses pessoais e profissionais e sua reputação perante os outros também ficam sob o controle de terceiros.
Trazer luz para esse fenômeno que causa violências contra a mulher e reconhecer que ele existe é importante para que homens, mulheres e organizações públicas e privadas desenvolvam práticas que possam contribuir para uma mudança de pensamento e comportamento da sociedade no geral.
Para ter acesso ao artigo publicado pelos autores na Revista de Administração Contemporânea, acesse o link:
http://www.spell.org.br/documentos/ver/58355/as-facetas-da-comodificacao-de-mulheres–violencia-no-contexto-universitario-de-administracao/i/pt-brReferências:
[i] ONU. Organização das Nações Unidas. Prevenção da violência sexual e da violência pelo parceiro íntimo contra a mulher – Ação e produção de evidência. In: WHO , 2010. Disponível em http://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/44350/9789275716359_por.pdf?sequence=3. Acesso em 10 de abril 2018.
UNITED NATIONS.From Commitment to Action: Policies to End Violence Against Women in Latin America and the Caribbean. In: Latina America, 2017. Available at: <http://www.latinamerica.undp.org/content/rblac/es/home/library/womens_empowerment/del-compromiso-a-la-accion–politicas-para-erradicar-la-violenci.html>. Accessed on May 02, 2020.
[ii] Ver Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Anuário Brasileiro de Segurança Pública., 2019. Available at: <http://www.forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2019/09/Anuario-2019-FINAL-v3.pdf>.
[iii] HIRSCHMAN, E. C.; HILL, R. P.. On human commoditization: A model based upon African-American slavery. ACR North American Advances, 1999.
HIRSCHMAN, E. C.; HILL, R. P.. On human commoditization and resistance: A model based upon Buchenwald concentration camp. Psychology & Marketing, v.17, n.6, pp. 469-491, 2000.
VAN BINSBERGEN, W. M.; GESCHIERE, P. (Eds.).. Commodification: Things, Agency, and Identities: (The Social Life of Things Revisited), v. 8. LIT Verlag Münster, 2005.
[iv] KOPYTOFF, I.. The cultural biography of things: commoditization as process. In: APPADURAI, Arjun. (Ed.). The social life of things: Commodities in cultural perspective. Cambridge, UK: Cambridge University, 1986.
[v] SHARP, L. A.. The commodification of the body and its parts. Annual Review of Anthropology, v. 29, n.1, pp. 287-328, 2000.
[vi] HIRSCHMAN, E. C.; STERN, B. B.. Women as commodities: prostitution as depicted in the blue angel, pretty baby, and pretty woman. ACR North American Advances, 1994.
HARTSOCK, N.C.M.. Women and/as Commodities. Canadian Woman Studies/Les Cashiers de la femme, v.23, pp. 3-4, 2004.
RUDMAN, L. A.; FETTEROLF, J. C.. Gender and sexual economics: Do women view sex as a female commodity?. Psychological Science, v.25, n.7, pp. 1438-1447, 2014.
[vii]HIRSCHMAN, E. C.. Exploring the Dark Side of Consumer Behavior: Methaphor and Ideology in Prostitution and Pornography. In: GCB – Gender and Consumer Behavior Volume 1, eds. Dr. Janeen Arnold Costa, Salt Lake City, UT : Association for Consumer Research, Pages: 303-314, 1991
HIRSCHMAN, E. C.; STERN, B. B.. Women as commodities: prostitution as depicted in the blue angel, pretty baby, and pretty woman. ACR North American Advances, 1994.
[viii] CARTER, A.. The Sadeian Woman: And the ideology of pornography. New York: Pantheon Books, 1978.
DWORKIN, A.. Men possessing women. New York: Perigee, 1981.
HENRIOT, C.. Supplying female bodies: Labor migration, sex work, and the commoditization of women in colonial Indochina and contempory Vietnam. Journal of Vietnamese Studies, v.7, n.1, pp. 1-9, 2012.
HIRSCHMAN, E. C.; STERN, B. B.. Women as commodities: prostitution as depicted in the blue angel, pretty baby, and pretty woman. ACR North American Advances, 1994.
[ix] DWORKIN, A.. Men possessing women. New York: Perigee, 1981.
NUSSBAUM, M. C.. Sex and social justice. Oxford: Oxford University Press, 1999.
MOORE, A. R.. Types of violence against women and factors influencing intimate partner violence in Togo (West Africa). Journal of Family Violence, v. 23, n.8, pp. 777-783, 2008.
[x] FREDRICKSON, B. L.; ROBERTS, T. A.. Objectification theory: Toward understanding women’s lived experiences and mental health risks. Psychology of women quarterly, v. 21, n.2, pp.173-206, 1997.
GRAY, K.; et al.. More than a body: Mind perception and the nature of objectification. Journal of personality and social psychology, v. 101, n.6, 2011.
WARD, L. M.. Media and Sexualization: State of Empirical Research, 1995–2015, The Journal of Sex Research, v. 53, n.4-5, pp. 560-577, 2016.
[xi] SLATER, A.; TIGGEMANN, M.. A test of objectification theory in adolescent girls. Sex Roles, v. 46, n.9-10, pp. 343-349, 2002.
[xii] FREDRICKSON, B. L.; ROBERTS, T. A.. Objectification theory: Toward understanding women’s lived experiences and mental health risks. Psychology of women quarterly, v. 21, n.2, pp.173-206, 1997.
[xiii] SHARP, L. A.. The commodification of the body and its parts. Annual Review of Anthropology, v. 29, n.1, pp. 287-328, 2000.
HARTSOCK, N.C.M.. Women and/as Commodities. Canadian Woman Studies/Les Cashiers de la femme, v.23, pp. 3-4, 2004.
¹Doutora em Administração de Empresas pela Fundação Getúlio Vargas (EAESP – FGV). Estágio Doutoral na Bentley University (EUA – 2018) e Licenciatura em Filosofia na Universidade Presbiteriana Mackenzie (2019). Professora da Escola Superior de Engenharia e Gestão (ESEG), nos cursos de Administração, Economia e Engenharia de Produção da Escola.
²Doutor em Administração de Empresas pela Fundação Getulio Vargas (EAESP – FGV – 2018). Pós-Doutorado na Bentley University (USA-2020). Licenciatura em Filosofia na Universidade Presbiteriana Mackenzie (2019). Professor permanente do Programa de Mestrado e Doutorado em Administração (PPGA) da Universidade Positivo (UP).
³PhD em Marketing & Strategy pela Cardiff University. Professora da Fundação Getulio Vargas (EAESP-FGV).
Como citar:
BARBOSA, Aline dos Santos; ROMANI-DIAS, Marcello; VELUDO-DE-OLIVEIRA, Tânia Modesto. Objetificação e Comodificação de Mulheres no Contexto Universitário Brasileiro. In: Nuevo Blog, 07 out. 2020. Disponível em: https://nuevoblog.com/2020/10/07/objetificacao-e-comodificacao-de-mulheres-no-contexto-universitario-brasileiro. Acesso em: ??
Deixe um comentário