Sou racista. E agora? Breves reflexões sobre racismo e Branquitude

Fonte: Imagem adaptada de Saúde Amanhã (23 fev. 2015)

Juliana da Rosa Maia Ressetti Vianna¹

Durante a maior parte da minha vida, acreditei ser uma pessoa contrária às injustiças sociais que vivenciava, direta e indiretamente, e me baseava na crença cega de ser uma pessoa não racista. Essa crença começou a mudar durante esta pandemia, quando passei a refletir sobre qual seria o meu papel, enquanto mulher branca, no processo racial do qual faço parte.

Sendo assim, este texto é uma reflexão sobre racismo e Branquitude. Especialmente, sobre como eu percebi que faço parte dele, e que o meu limitado conhecimento sobre o tema guardava pouca ou nenhuma relação com a realidade. Mas, antes de explicar os motivos que ensejaram essas conclusões, gostaria de descrever um pouco do caminho que percorri até chegar a este ponto para, quem sabe, apoiar outras pessoas que desejem fazer o mesmo.

Inicialmente, provocada pelas postagens sobre racismo que eu via no Instagram e pelas notícias de diversos assassinatos de pessoas negras divulgadas pela mídia, senti necessidade de me aprofundar no assunto, e comecei a ler alguns livros.

Um deles, foi o livro “Mulheres, Raça e Classe”, da Angela Davis[i]. Com ele, descobri, dentre outras coisas não menos indignantes, que os movimentos abolicionistas e feministas dos Estados Unidos (do século XIX e início do século XX) não hesitaram em abandonar a luta pela igualdade de direitos entre negros e brancos. Isso ocorreu, especialmente, quando tais movimentos enxergaram a possibilidade de o homem negro conquistar o direito ao voto antes das mulheres brancas.

Ou seja, mulheres brancas que, em tese, lutavam pela igualdade de direitos de pessoas negras e pessoas brancas, sentiram-se ameaçadas com a possibilidade “imaginária” de que os homens negros passassem a ter mais direitos que elas. Na verdade, mesmo com direito ao voto, os homens negros continuariam (e continuam) ocupando posições sociais hierarquicamente inferiores às das mulheres brancas não só nos Estados Unidos, mas também no Brasil.

Além disso, aqueles movimentos feministas defendiam, primordialmente, os interesses das mulheres brancas, enquanto marginalizavam as reivindicações das mulheres negras que, não raras vezes, ficaram de fora das discussões mais importantes sobre seus próprios direitos.

Essas “simples” revelações me incomodaram muito, pois rompiam com o ideal revolucionário e de justiça que eu imaginava sobre esses movimentos. No entanto, também me ajudaram a perceber que a minha intenção de não ser racista não era suficiente para me tornar uma pessoa não racista. Isto é, não se tratava meramente de uma questão maniqueísta entre ser boa ou má.

O assunto era muito mais complexo. Isso se deve, dentre outros, ao fato de o racismo ser um problema estrutural e, portanto, constituir a base sobre a qual se formaram as sociedades racistas[ii].

No sul dos Estados Unidos, por exemplo, trabalhadores negros e brancos pobres compartilhavam dos mesmos desejos de melhores condições de trabalho e de vida. No entanto, essa identidade de objetivos em comum foi deixada de lado quando os trabalhadores brancos perceberam seus benefícios por fazerem parte da Branquitude[iii].

Ao absorver os privilégios decorrentes da identificação como “não-escravos” e “não-negros”, a classe trabalhadora branca dos Estados Unidos percebeu o poder que essa identidade lhe proporcionava, e passou a se posicionar contrariamente aos interesses dos trabalhadores negros, inaugurando, dessa forma, a supremacia branca naquele país. Essa era (e ainda é) uma forma de alcançar lugares na sociedade que não seriam possíveis, caso todos os trabalhadores fossem considerados iguais[iv].

Esse poder mencionado acima é uma das características da Branquitude, que pode ser vista como uma “consciência silenciada”[v] dos brancos sobre os privilégios (econômicos, culturais e sociais) decorrentes da sua raça. Além dessa, outra característica da Branquitude é o não reconhecimento pelos brancos, de sua parte no processo racial, mesmo atribuindo a si mesmo o poder de classificar o outro como não branco, como diferente, como racializado. Ou seja, a Branquitude se sente legitimada a falar sobre tudo e sobre todos, mas não fala de si e dos seus privilégios enquanto raça.

Alberto Guerreiro Ramos tratou dessa questão em seu artigo intitulado “A patologia social do ‘branco’ brasileiro”. Para ele, a forma como as relações raciais foram analisadas no Brasil é sintomática desta patologia social do branco, que deixa de estudar a si enquanto raça e passa a estudar apenas o negro[vi].

Esse silenciamento da Branquitude, vem acompanhado do que a autora Maria Aparecida Bento classifica como “pactos narcísicos da Branquitude”[vii], que são alianças silenciosas para sustentar e fortalecer os privilégios e vantagens dos brancos, numa espécie de sistema que se retroalimenta constantemente. Esses pactos narcísicos são estabelecidos porque a Branquitude tem medo não apenas de perder posições de poder, mas também as vantagens e privilégios resultantes dessas posições.

Então eu sou racista!

Em seguida, compreendi que, se o racismo forma a estrutura social da qual faço parte e determina todas as relações sociais que vivencio[viii], então eu sou racista! Ou melhor, somos todos racistas[ix], na medida em que fazemos parte desta mesma sociedade.

A fim de comprovar essas afirmações, fui analisar o meu passado e constatei que minha formação, tanto familiar quanto escolar e universitária, baseou-se na falácia da democracia racial. Segundo essa falácia, não existem raças no Brasil em virtude do processo de miscigenação entre as três “raças” que fundaram a população brasileira (índio, negro e branco).  Como consequência lógica dessa afirmação, tem-se que, se não existem raças, então somos todos iguais, e não haveria que se falar em racismo[x].

Lamentavelmente, essa foi a única versão da história que aprendi, repetidamente, até hoje. Mas, o grande perigo desta história única é que ela não era e não é, de fato, a única, tampouco, a verdadeira[xi], e irei explicar porquê.

De fato, para a biologia atual não existem raças humanas. No entanto, os conceitos de raça e de racismo permanecem ativos como construções sociais. Nesse sentido, o racismo no Brasil não só existe desde a nossa colonização, como passou a ser legitimado pelo conceito de raça que veio depois dele, pela política de branqueamento social e pela adoção de teorias eugenistas pela elite intelectual brasileira do início do século XX (em sua maioria, homens brancos, claro).

Construiu-se, entre os brasileiros, a ideia de que as características culturais e estéticas positivas se referiam aos brancos, e as características culturais e estéticas negativas, diziam respeito aos negros. Como consequência, os “brancos” brasileiros, passaram a rejeitar as características negras oriundas de suas ancestralidades. Acontece que, no Brasil, existe pouca probabilidade de que existam “brancos puros”, ou seja, aqueles sem nenhuma influência biológico-cultural negra[xii].

Nesse sentido, o fato de a Branquitude brasileira exaltar as características físicas e culturais europeias em detrimento das características físicas e culturais negras é mais um sintoma de sua “patologia”.  Tal comportamento patológico se justifica pelo fato de os brancos brasileiros possuírem, em sua maioria, descendência biológica e/ou cultural negras, mas se envergonharem disso e fugirem dos estereótipos negativos ligados aos negros[xiii].

Além disso, no Brasil, o racismo continua a ser reproduzido e legitimado, diariamente, não só nas vidas das pessoas negras, mas também nas vidas das pessoas brancas que, ao silenciarem sobre o racismo que vivenciam e reproduzem, são responsáveis pela sua manutenção na sociedade.

Minhas (nossas) práticas racistas

Passei, então, a olhar para mim em busca dos sintomas desse racismo silenciado ou internalizado[xiv] e, para a minha surpresa, encontrei muitos. Primeiro, presentes em meu vocabulário estavam inúmeras expressões racistas já naturalizadas, e que eu utilizava sem perceber a sua conotação negativa. Segundo, eu negava ser racista. Afinal, eu nunca concordei com atitudes racistas ou discriminatórias de qualquer natureza. Ainda, eu achava que ter amigas negras e amigos negros era suficiente para me tornar uma pessoa não racista. Terceiro, como mulher branca e de classe média, não fui ensinada a pensar sobre como a minha cor da pele sempre me colocou em posições de privilégio dentro da sociedade.

Tais sintomas evidenciaram não apenas a dimensão estrutural do racismo dentro de mim, mas também as dimensões individual e institucional. Assim, estudar a Branquitude, e a minha responsabilidade social enquanto parte dela, mostrou-se urgente e prioritário neste momento da minha vida, no qual constatei a necessidade de romper com os “pactos narcísicos da Branquitude”[xv].

E agora?

Isso significa quebrar o meu silêncio e admitir que a minha subjetividade e a história do meu país, são marcadas pela violação sistemática de direitos de um grupo em benefício de outro. Significa, também, assumir a responsabilidade de agir concretamente contra a opressão racial e questionar, a todo momento, as minhas atitudes racistas e as dos outros.

Nessa perspectiva, é inevitável assumir uma postura incômoda (mas necessária) de falar, escrever e me posicionar publicamente e de forma crítica[xvi] contra o racismo que presencio no cotidiano, e convidar outras pessoas a também fazê-lo.

É fundamental, ainda, criticar e questionar, ativamente, o fato de só existirem pessoas brancas nas posições de poder das empresas e do governo, nos bairros nobres da cidade onde vivo, nos cargos de chefia do meu trabalho, dentro da minha sala de aula na instituição de ensino superior, no meu prédio, na minha academia.

Por fim, no tempo em que vivemos, não há mais espaço para a consciência calada e passiva do branco que se diz antirracista. É urgente que a Branquitude, e aqui eu meu incluo, exercite sua autocrítica e busque as informações necessárias para se posicionar de forma consciente e ativa quanto ao racismo. Quem sabe, assim, poderemos deixar, como legado para as gerações futuras, o projeto de uma sociedade menos discriminatória e violenta com relação às questões raciais.

Agradecimentos

Neste início de jornada dos meus estudos sobre Branquitude, agradeço à Caroline Rodrigues Silva por gentilmente compartilhar seu conhecimento comigo e indicar as obras que me deram a base para escrever este texto.

Agradeço também à Professora Josiane Oliveira, que generosamente cedeu seu tempo para fazer a revisão e me dar valiosas orientações sobre o tema.

Por fim, agradeço ao Fernando Vianna pelo incentivo e pela parceria nesta jornada.

Referências:

[i] DAVIS, A. Mulheres, raça e classe. Boitempo Editorial, 2016.

[ii] ALMEIDA, S. Racismo estrutural. Pólen Produção Editorial LTDA, 2019.

[iii] SCHUCMAN, L. V.. Entre o encardido, o branco e o branquíssimo: raça, hierarquia e poder na construção da branquitude paulistana. Tese (Doutorado em Psicologia Social) – Universidade de São Paulo, 2012.

[iv] Idem item iii.

[v] BENTO, M. A. S.. Pactos narcísicos no racismo: branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público”. Tese (Doutorado em Psicologia Escolar e Desenvolvimento Humano) – Universidade de São Paulo, 2002.

[vi] RAMOS, A. G. Patologia social do” branco” brasileiro. Jornal do Commercio, 1955.

[vii] Idem item v.

[viii] KILOMBA, G.. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Editora Cobogó, 2020.

[ix] SCHUCMAN, L. V.. Sim, nós somos racistas: estudo psicossocial da Branquitude paulistana. Psicologia & Sociedade, v.26, n.1, 2014.

[x] MILENA, L.. “Kabengele Munanga, o antropólogo que desmistificou a democracia racial no Brasil”. Carta Maior, 15 maio 2019.

[xi] ADICHIE, C. N.. O perigo de uma história única [Canal de YouTube] TED Ideas Worth Spreading, 2009. Disponível em: <https://www. youtube. com/watch, 9>.

[xii] Idem item vi.

[xiii] Idem item vi.

[xiv] RIBEIRO, D.. Pequeno manual antirracista. Companhia das Letras, 2019.

[xv] Idem item v.

[xvi] MÜLLER, T. M.; CARDOSO, L.. Branquitude: estudos sobre a identidade branca no Brasil. Appris Editora e Livraria Eireli-ME, 2018.

¹Graduada em Direito pela Universidade Positivo.

Como citar:
VIANNA, Juliana da Rosa Maia Ressetti. Sou racista. E agora? Breves reflexões sobre racismo e Branquitude. In: Nuevo Blog, 12 nov. 2020. Disponível em: https://nuevoblog.com/2020/11/12/sou-racista-e-agora-breves-reflexoes-sobre-racismo-e-branquitude/. Acesso em: ??

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