
Danilo Andretta¹
A literatura acadêmica na área de carreira possui grande interesse sobre a construção das trajetórias profissionais dos indivíduos nas organizações. Há uma centralidade inerente às escolhas individuais e ao percurso que estes indivíduos realizam no mercado de trabalho, quando a carreira é vista sob a ótica do sujeito, ou um interesse mais voltado à gestão das carreiras e as possibilidades de avanço que são apresentadas pela ótica das organizações[i].
De ambos os lados, a discussão mais tradicional de carreiras parece não tangenciar o contexto mais amplo nos quais estes sujeitos estão inseridos. Por isso, o meu recorte aqui se faz à luz das famílias e a partir do conceito de “casais dual career”.
Esse conceito já é bastante antigo, sendo proposto no final da década de 1960 por Rapoport e Rapoport (1969[ii]). Não à toa, os autores eram um casal e começaram a observar mudanças nas configurações familiares dos EUA. Cada vez mais, homens e mulheres passavam a construir carreiras em conjunto e isso afetava diretamente as relações familiares. O conceito então foi proposto para trazer reflexões sobre as práticas organizacionais e suas influências sobre as famílias.
Contudo, naquela época, o entendimento de carreira ainda era fortemente associado a elementos como nível de escolaridade e renda. Por isso, as carreiras eram vistas do ponto de vista dos médicos, dos engenheiros, dos gestores, dos advogados, ou seja, sobretudo a partir de profissões de maior prestígio social. As mulheres que passaram a construir carreiras também compunham um estrato privilegiado da sociedade[iii]. Não podemos esquecer, entretanto, que a entrada das mulheres no mercado de trabalho a partir dos anos 1960 está fortemente atrelada ao intenso movimento feminista deste período[iv].
A partir desta concepção, muitos estudos floresceram para compreender as dinâmicas familiares destes casais que rompiam com o modelo tradicional de família, na qual o homem era visto como único provedor, e passavam a construir carreira conjuntamente.
É preciso entender porque falar destes casais traz novos olhares ao campo organizacional. O mais evidente é que, tradicionalmente, os homens trabalharam em tempo integral nas organizações enquanto as mulheres permaneciam no reduto doméstico para realizar as tarefas da casa e cuidar dos filhos. À medida que as mulheres passam também a construir carreira e possuir aspirações profissionais, torna-se muito mais difícil equacionar as demandas do trabalho e da casa. Diante disso, muitos estudos voltaram-se aos conflitos trabalho-família[v].
Soma-se a isso muitos estudos que demonstram que as mulheres enfrentam o fenômeno teto de vidro, ou labirinto de vidro, como barreiras horizontais e verticais invisíveis nas organizações que cerceiam o desenvolvimento profissional das mulheres em virtude da demarcação do gênero[vi]. Ainda, quando olhamos sob o ponto de vista da gravidez, quantas mulheres não perdem seus empregos por unicamente desejarem ter filhos? Ou ainda, quantas mulheres recebem menos que os homens mesmo com maior nível de escolaridade?
Por isso, explorar o conceito de “casais dual career” é reafirmar um compromisso mútuo com a equidade de gênero na esfera familiar e na esfera do trabalho. Olhando para as famílias propriamente, os casais dual career buscam o equilíbrio na divisão das tarefas domésticas e do cuidado dos filhos. Homens e mulheres participam conjuntamente na gestão do ambiente doméstico, rompendo enfaticamente com o modelo tradicional de família, pois casa deixou de ser o espaço único e exclusivo das mulheres. Além disso, as decisões profissionais que alcançam as carreiras do casal passam a ser discutidas e decididas em conjunto, porque já não há mais uma única carreira sendo construída. Assim, o diálogo se mostra também como um dos conceitos-chave nessa perspectiva[vii].
Cabe às organizações, por sua vez, reconhecerem que as famílias constituem uma das instituições mais importantes para os indivíduos. E uma problemática suscitada a partir das teorias tradicionais de carreira é justamente por apresentarem um interesse único no indivíduo, tanto pela ótica do sujeito quanto da organização. O conceito de “casais dual career” busca justamente romper com essa perspectiva unidirecional.
E como as organizações podem oferecer suporte e valorizar as famílias? Esse tema ainda se mostra distante dos gestores de RH[viii], mas não parece tão impossível assim. Inclusive, a literatura voltada ao olhar das organizações sobre os casais dual career também não é recente[ix]. Muitas práticas não demandam altos investimentos, mas tão somente um olhar mais sensível da gestão sobre as necessidades das famílias e um compromisso verdadeiro com a equidade de gênero.
Entre as práticas mais difundidas voltadas às demandas dos casais dual career, estão a adoção de horário flexível e da possibilidade de home office, tão em voga em tempos atuais. Isso implica em possibilitar aos pais levarem e buscarem seus filhos para a escola ou médico, ou atenderem necessidades específicas das crianças ou deles mesmos, sem prejuízo ao trabalho. Outra prática de gestão de pessoas relevante neste cenário é incluir as famílias nos planos de benefícios e oferecer diferentes opções para escolha dos benefícios que atendem as necessidades dos casais, ou ainda oferecer férias em período compatível com o cônjuge.
Quanto à própria gestão de carreiras das organizações, torna-se imperativo considerar as famílias na definição de mobilidade dos funcionários para outras unidades da empresa, principalmente quando a expatriação está no horizonte da decisão. Sob a olhar da dual career, esse tipo de decisão interfere diretamente a construção de carreira do parceiro e deve ser levado em conta. Quando o casal aceita essa mobilidade, a organização pode demonstrar um compromisso com o reposicionamento profissional do cônjuge e suporte à educação dos filhos.
Também é importante que as organizações respeitem o horário de trabalho dos indivíduos. Cada vez mais discute-se os problemas da jornada de trabalho full time, na qual o indivíduo deve sempre estar disponível para as organizações, principalmente quando se pensa na facilidade de comunicação a partir dos dispositivos móveis. Uma organização que valoriza as famílias reconhece também que os indivíduos possuem compromissos com o seu parceiro e com os seus filhos quando não está em horário de trabalho.
Outras práticas de gestão de pessoas podem ser pensadas de modo a valorizar as famílias. É preciso que as organizações assumam esse compromisso, principalmente quando consideramos que a família é uma das instituições mais valorizadas da nossa sociedade e muitos casais posicionam a família à frente do trabalho[x]. Mas este debate ainda é marginal nos estudos organizacionais.
Entre desafios e dilemas historicamente associados ao conceito de casais dual career, eu gostaria de concluir estas reflexões ressaltando dois aspectos necessários para o avanço deste fenômeno no debate organizacional. O primeiro é ampliar o entendimento de carreira, adotando novas epistemologias que possam reconhecer que a carreira não está somente associada ao nível de escolaridade elevado ou às profissões socialmente reconhecidas. Todas as pessoas possuem trajetórias no mundo do trabalho, com desejos e sonhos, com dificuldades e desafios, e com diferentes concepções de sucesso[xi]. Não podemos mais permitir e sustentar a elitização do conceito de carreira.
O segundo aspecto também busca radicalizar o próprio entendimento de família, pois historicamente este debate esteve direcionado às famílias heterossexuais. Precisamos começar a falar dos casais dual career formados por homossexuais e transexuais[xii], pois as práticas organizacionais orientadas aos casais dual career precisam alcançar todos os modelos de famílias.
Esta reflexão sobre os casais dual career buscou apresentar a origem histórica do conceito, os seus principais interesses na literatura acadêmica e de que forma as suas contribuições podem ser adotadas de forma prática pelas organizações. Ademais, buscou-se também apresentar sucintamente como podemos avançar nesta temática. Mas vale ressaltar, como destaque final, que falar dos casais dual career é sempre assumir um compromisso verdadeiro com a equidade de gênero.
Referências:
[i] ARTHUR, M. B. Examining contemporary careers: A call for interdisciplinary inquiry. Human Relations, v. 61, n. 2, pp. 163–186, 2008.
[ii] RAPOPORT, R.; RAPOPORT, R. N. The dual career family: a variant pattern and social change. Human Relations, v. 22, n. 1, pp. 3-30, 1969.
[iii] HUGHES, J. L. Persisting problems with operationalizing dualcareer couples: A proposal to use the term dual-income couples. Marriage & Family Review, v. 49, n. 8, pp. 694-716, 2013.
[iv] CALAS; M. B.; SMIRCICH, L. From the ‘Woman’s Point of View’ Ten Years Later: Towards a Feminist Organization Studies. In: CLEGG, S. R.; HARDY, C.; LAWRENCE, T. B.; NORD, W. R. The SAGE Handbook of Organization Studies. London: SAGE Publications Ltd., 2006.
[v] HIGGINS, C. A.; DUXBURY, L. E.; IRVING, R. H. Work-Family Conflict in the Dual-Career Family. Organizational Behavior and Human Decision Processes, v. 51, n. 1, pp. 51-75, 1992.
[vi] SANTOS, C. M. M.; TANURE, B.; CARVALHO NETO, A. M. Mulheres executivas brasileiras: O teto de vidro em questão. RAD, v. 16, n. 3, pp. 56-75, 2014.
[vii] BERLATO, H.; CORREA, K. F. Uma reformulação no modelo conceitual sobre dual career para análise no âmbito organizacional: revelando novas vertentes. Brazilian Business Review, v. 14, n. 2, pp. 225-246, 2017.
[viii] BERLATO, H. O processo de (re)conhecimento das empresas sobre as práticas de gestão de pessoas voltadas às iniciativas que tratam a relação trabalho e família: um olhar sob a perspectiva da dual career. 2018. Tese de Livre-Docência (Administração) – Escola Superior de Agricultura ‘Luiz de Queiroz’, Universidade de São Paulo.
[ix] HALL, F. S.; HALL, D. T. Dual careers – How do couples and companies cope with the problem? Organizational Dynamics, v. 6, n. 4, pp. 57-77, 1978.
[x] ANDRETTA, D. Deixará pai e mãe e se unirá a sua mulher, e os dois formarão uma só carne: a dual career sob a influência da religião. 2020. Dissertação de Mestrado (Administração) – Escola Superior de Agricultura ‘Luiz de Queiroz’, Universidade de São Paulo.
[xi] COHEN, L.; DUBERLEY, J.; MALLON, M. Social constructionism in the study of career: Accessing the parts that other approaches cannot reach. Journal of Vocational Behavior, v. 64, n. 3, pp. 407–422, 2004.
[xii] O’RYAN, L. W.; MCFARLAND, W. P. A phenomenological exploration of the experiences of dual-career lesbian and gay couples. Journal of Counseling e Development, v. 88, n. 1, pp. 71-79, 2010.
¹Doutorando em Administração de Empresas pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Como citar:
ANDRETTA, Danilo. Casais Dual Career: Repensando o Valor da Família nas Organizações. In: Nuevo Blog, 18 nov. 2020. Disponível em: https://nuevoblog.com/2020/11/18/casais-dual-career-repensando-o-valor-da-familia-nas-organizacoes . Acesso em: ??
Deixe um comentário