
Amanda Zambelli¹
Nunca se falou tanto sobre empreendedorismo nos últimos anos. O Relatório Executivo sobre Empreendedorismo no Brasil (2019[i]) aponta que em números absolutos, há cerca de 53,5 milhões de brasileiros entre 18 e 64 anos à frente de alguma atividade empreendedora. Em relação a 2018, houve um aumento de 40% na taxa de novos empreendedores, número que deve atingir o maior patamar em 2020, em função da pandemia da Covid-19 e das consequências que essa têm gerado para a economia do país. Apesar dos dados estatísticos sobre o tema, uma realidade se mantém constante. A reprodução das desigualdades existentes entre homens e mulheres quando o assunto é empreender e a reprodução heteronormativa sobre os discursos de quem é o empreendedor de sucesso de quais espaços ele pode ocupar.
Se observarmos os dados do Global Entrepreneurship Monitor (GEM, 2019[ii]), perceberemos que homens e mulheres empreendem em proporção similar e que no universo de mulheres, 56% das empreendedoras são negras e periféricas. Mas se fecharmos os olhos ou abrirmos os principais livros que versam sobre o empreendedorismo nas escolas de negócios, ainda nos lembraremos ou encontraremos como cases de sucesso exemplos de homens brancos empreendedores. Aqueles que tiveram uma ideia inovadora no fundo de suas garagens fomentadas de privilégio, reforçando um caráter normalizador dos discursos que circulam sobre o empreendedorismo.
As categorias normal e anormal resultam de processos de normalização, sustentados pela lógica da heteronormatividade[iii]. Trata-se de uma expressão que considera as expectativas, demandas e as obrigações sociais que derivam da reprodução de identidades hegemônicas como algo natural na sociedade[iv]. Na visão de Foucault (1979[v]), os processos de normalização ocorrem por meio dos dispositivos de poder, grupos heterogêneos que podem incluir discursos, instituições, normas, regras, entre outros. Esses aparatos organizam a vida dos indivíduos, ao direcionar os caminhos específicos que devem ser seguidos, forjar as subjetividades, regular e produzir identidades e membros de categorias discursivas de acordo com os contextos histórico, social e cultural, tais como homem, mulher, transgênero, mãe, pai[vi].
No campo empreendedor, isso significa dizer que esses discursos normalizadores contribuem para aprisionar mulheres em “caixinhas identitárias”, tornando o homem empreendedor o empresário de sucesso e a mulher empreendedora aquela que faz um bico ou empreende para sobreviver. Um segundo aprisionamento encontra-se no campo do simbólico. Ao problematizar gênero e empreendedorismo nas pesquisas acadêmicas ou notícias veiculadas na imprensa, Calás, Smircich e Bourne (2009[vii]) demonstram que os discursos que circulam sobre o tema ainda tendem a utilizar o masculino como padrão de comparação. Essa abordagem, na visão de Ahl e Marlow (2012[viii]) contribui para manter a reprodução das normas discursivas a respeito do empreendedorismo, uma vez que continuam sendo feitas as mesmas perguntas, o que gera as mesmas respostas, em um círculo vicioso de dominação. Ou seja, mesmo quando mulheres passam a ocupar espaços diversos por meio do empreendedorismo (oficinas mecânicas, barbearias, construção civil, rede de concessionárias, por exemplo), seguimos questionando quais desafios elas possuem em empreender em segmentos dominados pelo masculino e não quais os seus desafios no dia a dia do empreender (ponto).
O meu convite é para que que façamos um exercício constante de reflexão de nossas, falas, atitudes e comportamentos. Se reforçamos a lógica de comparação e posicionamos o homem branco heterossexual como o dominante, todas as demais categorias são automaticamente posicionadas como o Outro (mulheres brancas, mulheres negras, mulheres lésbicas, mulheres trans, …) e continuaremos a fazer as mesmas perguntas e obter as mesmas respostas, sem que haja o avanço no debate. Os desafios do empreendedorismo são vários e é impossível não levar em consideração as subjetividades do que significa o dia a dia do empreender. Não trazer à tona que o empreendedorismo também é atravessado pelas interseccionalidades é reforçar e sustentar todo o contexto estruturante em que nossa sociedade está baseada: no machismo, no racismo, na homofobia, na gordofobia. E passou da hora de questionarmos isso.
Homens e mulheres não empreendem de forma igual. Mulheres brancas e mulheres negras não empreendem de forma igual. Se somos moldados pelas nossas subjetividades e atravessados por discursos sobre o que significa se tornar um sujeito empreendedor por meio do gênero, da raça e/ou da orientação sexual, como questionar a norma em busca de uma alternativa de análise para o empreender?
Uma das possibilidades que apresento é a teoria queer e o empreendedorismo crítico. De acordo com Alexander (2003[ix]), o uso do termo “teoria queer” foi utilizado pela primeira vez como provocação. Teresa de Lauretis se utilizou da expressão como título de uma conferência voltada para os estudos gays e lésbicos em fevereiro de 1990, na Universidade da Califórnia. Trata-se de um jogo de palavras com o objetivo de fazer uma crítica aos movimentos assimilacionistas, uma vez que o termo queer isoladamente se refere a algo estranho, enquanto teoria se refere a algo fixo, estável[x]. No contexto organizacional, um dos pioneiros para o uso da teoria queer foi Martin Parker (2001[xi]), ao problematizar sobre o uso desta teoria e suas influências em processos de gestão.
Com raízes nos Estudos Críticos de Gestão (EGC) e influenciada por uma necessidade de repensar a inquestionável idealização a partir da crise econômica mundial do final dos anos 2000[xii], o empreendedorismo crítico surge como uma alternativa aos estudos tradicionais sobre este tema. O objetivo é problematizar os discursos dominantes que circulam nos estudos e nas descrições do dia a dia empreendedor[xiii]. O empreendedorismo crítico nos permite uma maneira alternativa de pensar a inovação e a criação de oportunidades econômicas e sociais, como respostas a contextos desfavoráveis a partir do desafio às noções sobre quem pode ser um empreendedor. Não estamos mais falando de uma lógica linear de empreendedorismo que engloba sucesso ou fracasso, mas de subjetividades que consideram também lutas, stress, desafios, realização.
Com base então na teoria queer e no empreendedorismo crítico, abrimos uma possibilidade de reposicionamento não só da mulher empreendedora, como também do empreendedorismo, considerando-o como um processo contínuo, fluido, não linear e aberto[xiv], subvertendo a orientação tradicionalista de pesquisas sobre o tema e a reprodução discursiva na sociedade. Empreendedorismo e empreendedor passam a ser construídos discursivamente, a partir da constituição das subjetividades de cada indivíduo, o que contribui para gerar novos significados, a partir de uma abordagem que busca expor as possíveis contradições nos desafios existentes no dia a dia empreendedor.
‘Queering identidades’ e ‘queering empreendedorismo’ permitem, então, ir além do contexto individual e econômico sobre o tema, ao buscar a compreensão das relações de poder existentes nos discursos que são construídos no dia a dia e permitem ao sujeito se tornar empreendedor, bem como possibilita produzir novas identidades empreendedoras que rompam com o que se apresenta como o normal, trazendo novos arranjos para se compreender o empreendedorismo.
Referências:
[i] NO BRASIL, Empreendedorismo. relatório executivo. Curitiba: IBQP, 2019. <https://ibqp.org.br/PDF%20GEM/Relat%C3%B3rio%20Executivo%20Empreendedorismo%20no%20Brasil%202019.pdf> Acesso em 14 nov. 2020.
[ii] GEM. Global Entrepreneurship. Monitor 2018-2019.(2019). Global Entrepreneurship Research Association (GERA), 2019.
[iii] BUTLER, Judith et al. Undoing gender. Psychology Press, 2004.
MISKOLCI, Richard. A Teoria Queer e a Sociologia: o desafio de uma analítica da normalização. Sociologias [online]. 2009, n. 21. , v. 337, p. 150-182, 1807.
[iv] COHEN, C. J. Punks, bulldaggers, and welfare queens: the radical potential of queer politics?. GLQ: A journal of lesbian and gay studies, v. 3, n. 4, p. 437-465, 1997.
CHAMBERS, S. A. Telepistemology of the closet; or the queer politics of’ six feet under”. The journal of american culture, v. 26, n. 1, p. 24-41, 2003.
[v] FOUCAULT, M. Microfísica do poder [microphysics of power]. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
[vi] RUMENS, Nick; DE SOUZA, Eloisio Moulin; BREWIS, Jo. Queering queer theory in management and organization studies: notes toward queering heterosexuality. Organization Studies, v. 40, n. 4, p. 593-612, 2019.
[vii] CALÁS, Marta B.; SMIRCICH, Linda; BOURNE, Kristina A. Extending the boundaries: Reframing “entrepreneurship as social change” through feminist perspectives. Academy of Management Review, v. 34, n. 3, p. 552-569, 2009.
[viii] AHL, Helene; MARLOW, Susan. Exploring the dynamics of gender, feminism and entrepreneurship: advancing debate to escape a dead end?. Organization, v. 19, n. 5, p. 543-562, 2012.
[ix] ALEXANDER, B. Querying queer theory again (or queer theory as drag performance). Journal of homosexuality, v. 45, n. 2-4, p. 349-352, 2003.
[x] MISKOLCI, Richard. A Teoria Queer e a Sociologia: o desafio de uma analítica da normalização. Sociologias [online]. 2009, n. 21. , v. 337, p. 150-182, 1807.
[xi] PARKER, Martin. Fucking management: queer, theory and reflexivity. ephemera, v. 1, n. 1, p. 36-53, 2001.
[xii] TEDMANSON, Deirdre et al. Critical perspectives in entrepreneurship research. 2012.
[xiii] VERDUYN, Karen; DEY, Pascal; TEDMANSON, Deirdre. A critical understanding of entrepreneurship. Revue de lEntrepreneuriat, v. 16, n. 1, p. 37-45, 2017.
[xiv] SORENSEN, B. M. Identity sniping: Innovation, imagination and the body. Creativity and innovation management, v. 15, n. 2, p. 135-142, 2006.
¹Doutoranda em Administração pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).
Como citar:
ZAMBELLI, Amanda. Teoria Queer e Empreendedorismo Crítico: uma alternativa de análise sobre o tema a partir das subjetividades do empreender. In: Nuevo Blog, 20 nov. 2020. Disponível em: https://nuevoblog.com/2020/11/20/teoria-queer-e-empreendedorismo-critico-uma-alternativa-de-analise-sobre-o-tema-a-partir-das-subjetividades-do-empreender/. Acesso em: ??
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