O Preconceito de Gênero na Mitologia das Assistentes Virtuais

Fonte: Imagem retirada do site Neoradar (03 abr. 2019).

Christiane Burle de Oliveira¹

Nesta resenha serão abordados os relatos mitológicos que inspiraram o nome das Assistentes Virtuais – chatbots de Inteligência Artificial – mais conhecidas, a saber: Siri, Alexa (acionada através de um artefato chamado Echo) e Cortana, corroborando os estereótipos de gênero presentes na escolha desses nomes, o que reproduz o preconceito com o feminino, e fazendo uma correlação com a Teoria do Conhecimento estudada na disciplina de Metodologia do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia e Sociedade da Universidade Tecnológica Federal do Paraná. Para isso, ter-se-á como base os textos “Teoria do Conhecimento” de Johannes Hessen[i] e “From Alexa to Siri and the GDPR: The Gendering of Virtual Personal Assistants and the Role of EU Data Protection Law” de Nora Ni Loideain e Rachel Adams[ii]. Também foram utilizados textos complementares.

Para Hessen (2000[iii]), a Teoria da Ciência seria dividida em teoria formal e doutrina material. Na teoria formal, da lógica, se busca o pensamento correto, enquanto nos princípios materiais, da teoria do conhecimento, se busca o pensamento verdadeiro, a filosofia fundamental. A lógica faz uma referência do pensamento aos objetos, pensando em si. A teoria do conhecimento faz uma referência objetiva do pensamento na sua relação com os objetos. Apesar de identificada desde a antiguidade, a Teoria do Conhecimento como disciplina só aparece na Idade Moderna, com John Locke. Em 1765, Leibniz tenta refutar Locke, enquanto Hume segue Locke. Mas o verdadeiro fundador da Teoria do Conhecimento é Kant, com o método transcendental ou criticismo, que sintetiza a união do racionalismo com o empirismo. Entre 1860 e 1920, um “neokantismo” separa o metafísico do epistemológico, dando ênfase à lógica e à ciência.

Na teoria do conhecimento, pode-se utilizar tudo, inclusive os dogmas e os mitos. Freud dizia que costumamos preferir a certeza à verdade, mas admite que nos mitos há fragmentos de verdade (1939/2004)[iv]. Entre uma temeridade dogmática e um desespero cético, há o meio-termo do criticismo inquisidor. A Grécia Antiga, berço da filosofia, era povoada de mitos. Tales (624 – 545 AEC[v]) dizia que todas as coisas estão cheias de deuses[vi]. Joseph Campbell (1990[vii]) afirmava que os mitos são histórias de nossa busca pela verdade, por um sentido, por um significado. Os mitos seriam mais do que um mero conceito intelectual, possuindo um caráter interior e proporcionando um sentido de “participação real na percepção da transcendência”[viii]. Assim, eles poderiam reproduzir nossas crenças e verdades interiores, o que inclui os nossos preconceitos.

Com relação aos nomes das Assistentes Virtuais mais conhecidas, Loideain (2018[ix]) afirma que seus designers teriam justificado essas escolhas pela clareza fonética no processo de reconhecimento de linguagem. No entanto, ela pontua que todos os nomes estudados tinham noções míticas de gênero. O nome da assistente da Apple, chamada Siri, vem do nórdico, de “uma bela mulher que te leva à vitória”. Alexa, assistente da Amazon, é um derivativo de Alexandra, do grego, “a que auxilia/defende os homens”. Alexandra era também o nome da profetisa mítica Cassandra, tida como louca por só antever desgraças, e era um epíteto da deusa Hera, deidade do casamento, por ser igualmente uma deusa que auxilia/defende os homens. Cortana, assistente do Windows 10 da Microsoft, vem da personagem de um jogo chamado Halo, sendo um clone da mente de uma cientista com um corpo sexualizado e “totalmente disponível aos homens que ela serve”[x].

A voz da Alexa é transmitida por um dispositivo chamado Echo. Echo, na mitologia, era uma ninfa que foi punida por Hera a apenas repetir tudo o que lhe dissessem. Echo se apaixona por Narciso, imagem do ideal de perfeição de beleza, que só enxerga a si próprio e ama apenas o seu reflexo. Echo, sem ser correspondida, definha até restar somente a sua voz. Em uma videoinstalação apresentada em bienais de arte, Grada Kilomba identifica Narciso com a supremacia branca que só ama os seus iguais, sendo Echo o consenso que repete e confirma as palavras de Narciso, ela “o segue silenciosamente, e cada momento de seu silêncio aplaude o discurso de Narciso”[xi]. Considerando uma interseccionalidade entre raça e gênero, aqui Narciso também pode representar o masculino que espera um feminino servil. Assim, na criticidade da teoria do conhecimento, é possível se verificar que a escolha do gênero dessas assistentes virtuais não se dá apenas pela sonoridade do nome ou pela justificativa estereotipada de que uma voz feminina é mais agradável e menos ameaçadora do que uma voz masculina, mas carrega uma mitologia que reforça o preconceito de um feminino que serve a um masculino opressor.  

Portanto, a referência do pensamento na sua relação com o objeto, apresentada pela teoria do conhecimento, nos permite analisar com criticidade a presença de estereótipos que reforçam o preconceito de gênero na escolha dos nomes femininos imbuídos de mitologia e atribuídos aos assistentes virtuais mais conhecidos e utilizados atualmente. Tomar consciência dessa motivação, que transcende a justificativa dada pelos designers às suas escolhas, possibilita uma reflexão a fim de se buscar uma maior inclusão e equidade no desenvolvimento das tecnologias.

Referências e Notas:

[i] HESSEN, Johannes. Teoria do Conhecimento. São Paulo. Martins Fontes, 2000, p. 01-89.

[ii] LOIDEAIN, N. N. e ADAMS, R. From Alexa to Siri and the GDPR: The Gendering of Virtual Personal Assistants and the Role of EU Data Protection Law. King’s College London Dickson Poon School of Law Legal Studies Research Paper Series, 2018.

[iii] Idem item i.

[iv] FREUD, S. (2004). Moisés y la religión monoteísta. In S. Freud, Obras completas (J. Etcheverryt. trad., Vol. 23, pp. 1-132). Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1939)

[v] Antes da Era Comum, notação convencionada para evitar conotações religiosas.

[vi] ARISTÓTELES, De Anima. Apresentação, tradução e notas de Maria Cecília Gomes Reis. São Paulo. Ed. 34, 2006.

[vii] CAMPBELL, J. O Poder do Mito. São Paulo: Palas Athena, 1990.

[viii] Idem item vii.

[ix] Idem item ii.

[x] Tradução minha do “fully available to the men she serves” (Loideain, 2018, pag.3).

[xi] KILOMBA, Grada. Desobediências poéticas. Curadoria Jochen Volz e Valéria Piccoli; ensaio Djamila Ribeiro. São Paulo: Pinacoteca de São Paulo, 2019. Disponível em http://pinacoteca.org.br/wp-content/uploads/2019/07/AF06_gradakilomba_miolo_baixa.pdf

¹Mestranda em Tecnologia e Sociedade pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR).

Como citar:
OLIVEIRA, Christiane Burle de. O Preconceito de Gênero na Mitologia das Assistentes Virtuais. In: Nuevo Blog, 23 nov. 2020. Disponível em: https://nuevoblog.com/2020/11/23/o-preconceito-de-genero-na-mitologia-das-assistentes-virtuais/. Acesso em: ??

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