
Monique Nascimento¹
Eloise Helena Livramento Dallagnelo²
Marina Coelho³
Comumente dirigida a artistas, a frase “tu não fazes nada além de arte?” resguarda em si uma série de problemas, entre os quais abordaremos alguns neste espaço. Apontamos, incialmente, que muitos desses problemas são, em nosso entendimento, associados a não compreensão do fazer artístico enquanto trabalho. Situação que pode provocar vivências de sofrimento nesses sujeitos, bem como ter um efeito deletério na saúde psíquica desses trabalhadores e na construção da sua identidade. Porquanto, não compreender o fazer artístico enquanto trabalho é não reconhecer o artista enquanto trabalhador[i].
Nas sociedades ocidentais capitalistas, o pensamento cristão exerce influência naquilo que se concebe por trabalho. Do tripalium, momento de punição, mal necessário, temos no fim da idade média, reforçado pela moral protestante, a associação do trabalho a algo dignificante, a um propósito de vida. Trabalho este, executado mediante recompensas financeiras e relacionado, à época, a profissões regulares, demarcadas, sistemáticas e metódicas[ii]. Profissões que ainda hoje, ao envolverem o exercício de uma atividade profissional mediante contrato formal sustentam-se como formas de inserção e reconhecimento social[iii].
Contudo, hodiernamente, frente a um cenário econômico e político instável, e do avanço de um discurso neoliberal, promove-se e legitima-se formas ditas flexíveis de trabalho, em que a flexibilidade aparece como sinônimo de precariedade e o trabalhador é conduzido a sentir-se responsável pelos resultados de seu trabalho e carreira. Aqui vemos surgir a ampla disseminação do trabalho autônomo e dos contratos temporários (não obstante à precariedade de suas condições) como libertários – portanto, desejáveis – e do empreendedor como um modelo ideal de sujeito/trabalhador[iv].
A promoção e busca pela legitimação do discurso do empreendedor – e deste enquanto trabalhador – nos parece contraditória quando pensamos na não compreensão da atividade artística enquanto trabalho e no não reconhecimento do artista como trabalhador. Mencionamos isto, tendo em vista as aproximações que envolvem suas condições de trabalho – como, trabalho autônomo, intermitente e variabilidade de renda/inseguranças financeiras[v].
Isto posto, evidenciamos a predominância de pelo menos dois elementos, inter-relacionados, que acreditamos contribuir para uma não compreensão do trabalho artístico nas sociedades ocidentais capitalistas: a) a ascensão de um modo limitado de julgamento da utilidade – técnica, econômica e social –, que dificulta o reconhecimento social do fazer artístico enquanto trabalho; e b) a inibição do julgamento da beleza provocada pelo ethos competitivo do modo de produção capitalista[vi]. No que concerne ao questionamento da utilidade técnica, econômica e social da atividade artística nas sociedades atuais, nos parece que esta tende a superar o fato de o trabalho artístico não envolver uma atividade de trabalho executado mediante recompensa financeira por vínculo empregatício, preferencialmente formal, especialmente quando pensamos na legitimação social que o discurso do empreendedorismo tem obtido[vii].
Vale relembrar que o auxílio emergencial que começou a ser pago em abril de 2020, em virtude da pandemia da covid-19, à microempreendedores individuais, contribuintes individuais da Previdência Social e trabalhadores informais, não abrangeu a categoria profissional dos artistas. Frente a um cenário pandêmico, artistas vendiam instrumentos de trabalho para levantarem recursos para subsistirem e/ou dependiam de ações populares e\ou de organizações sem fins lucrativos que lhes forneciam, em alguns momentos, cestas básicas. Entre os três poderes, foi o Legislativo que se abriu a interlocuções com sujeitos, grupos e organizações de representação do setor em busca medidas legais que garantissem um nível mínimo de renda que permitisse a sobrevivência durante a pandemia.
Nesse contexto, foram estruturados projetos de lei que tratavam de diferentes atores, fazeres e instituições artísticas e culturais. Dada a emergência da aprovação e dificuldade de fazê-la para o conjunto dos projetos de lei propostos, houve o esforço de diversos parlamentares, incluindo-se a relatoria da Deputada Jandira Feghali, para a reunião de todos os projetos no PL Nº 1.075, de 2020. Este, de autoria da Deputada Benedita da Silva e outros, em sua etapa final de aprovação, foi denominado de Lei de Emergência Cultural Aldir Blanc – em homenagem ao compositor, poeta e músico, uma das vítimas fatais do coronavírus no Brasil –, e, apesar de estar em execução, há uma série de dificuldades que envolvem elaboração de editais, pagamentos dos prêmios, e, prestação de contas em prazo hábil. Situação que tem mobilizado, diversos atores culturais a buscarem a prorrogação, para 2021, dos prazos de utilização dos recursos e prestações de contas dos mesmos.
Tal reivindicação é de extrema importância, quando lembramos que os artistas, diante do cenário pandêmico, encontram-se, em sua maioria, com suas atividades suspensas e não possuem perspectiva de retorno as mesmas. Além disto, em condições “normais”, estes já enfrentavam frequentemente situações, como: instabilidade financeira; contratos hiperflexíveis, precários e informais, que restringiam a liberdade de criação; e, assumiam um ritmo intenso de trabalho ao se envolverem em projetos múltiplos com diferentes clientes[viii]. Situações que já lhes causavam desgastes físicos e psíquicos e que foram intensificadas com a pandemia da covid-19. Por fim, apontamos que apesar de a arte, enquanto trabalho ser considerada, por autores como Freud e Dejours, uma atividade com alto potencial sublimatório[ix] observamos que circunstâncias, como as anteriormente descritas, podem provocar a instalação de desestabilização psíquica e adoecimento[x].
Acesse a pesquisa realizada pelas autoras sobre a temática:
http://www.spell.org.br/documentos/ver/59359/-tu-nao-fazes-nada-alem-de-arte—uma-analise-psicodinamica-do-trabalho-artistico/i/pt-brReferências:
[i] NASCIMENTO, M.; DELLAGNELO, E. H. L. ; COELHO, M. “Tu Não Fazes Nada Além de Arte?” Uma análise Psicodinâmica do trabalho artístico. RGO. Revista Gestão Organizacional (UNOCHAPECÓ), v. 13, n.3, p. 71-92, set./dez.2020.
[ii] WEBER, M. A Ética protestante e o Espírito do Capitalismo (1904). 1. ed. São Paulo: Martin Claret, 2013
[iii] DEJOURS, J. C. A banalização da injustiça social. 2ª ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1999.
[iv] DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Editora Boitempo, 2016.
[v] Idem item i.
[vi] Idem item i.
[vii] Idem item i.
[viii] Idem item i.
[ix] FREUD, S. Além do Princípio do Prazer (1920). In: Obras completas – História de uma Neurose Infantil (“O Homem dos Lobos”), Além do Princípio do Prazer e outros Textos (1917-1920). São Paulo: Companhia das Letras, 2010. v.14.
DEJOURS, J. C. A Sublimação, entre prazer e sofrimento no trabalho. Revista Portuguesa de Psicanálise. Lisboa, v.33, n.2, p.9-28, 2013.
[x] Idem item i.
¹Doutoranda em Administração pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
²Doutora em Engenharia de Produção (UFSC) e professora no Centro Sócio-Econômico da pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
³Doutoranda em Administração pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Como citar:
NASCIMENTO, Monique; DALLAGNELO, Eloise Helena Livramento; COELHO, Marina. Tu não fazes nada além de arte?. In: Nuevo Blog, 22 dez. 2020. Disponível em: https://nuevoblog.com/2020/12/22/tu-nao-fazes-nada-alem-de-arte/. Acesso em: ??.
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