
Egon Bianchini Calderari¹
Quantas vezes nos pegamos a recordar o que desejamos esquecer a qualquer custo? Da nostalgia dos dias ensolarados da infância até à dor causada pela inevitável partida, as memórias nos perfuram como lâminas. Muito além de um mero acúmulo de experiências úteis, utilizadas como guias de ação para o atendimento das exigências da sociedade administrada, as lembranças são parte constituinte de nossa personalidade.
Como bem descreveram Adorno e Horkheimer (1985[i]), somos vítimas das condições e das esperanças decepcionadas. Vagamos entre o esquecimento do que passou e a idolatria perene aos que já partiram por não aprendermos a conviver com eles e apesar deles. Nos falta tempo para as pazes com o luto e por isso nos contentamos com a miséria experenciada.
O desespero se edifica no horror estático dos cortes mal cicatrizados e impede que sigamos o caminho livres das amarras. Em frente, o indivíduo desaparece no curso de seu próprio trajeto, apagando seus rastros com medo de se sentir atraído a revisitar seu percurso algum dia. A comodidade de sua adaptação às regras da sociedade moderna, conseguida ao custo de uma parte importante de sua consciência, exige que todo e qualquer confronto contra o passado seja evitado. O progresso possui olhos somente para o futuro e regressar significa abandoná-lo sem possibilidade de reconciliação.
Na tentativa de nos mostrarmos adaptados às exigências da civilização, o auto sacrifício imposto pela consciência abstrai (no ápice de sua irracionalidade) aquilo que ainda resta de exclusivamente humano a nós: a capacidade de retomar o passado afetivamente, apesar das dores infligidas por sua rigidez.
Trancafiar as memórias em um mausoléu equivale a aniquilar a própria história, tendo como recompensa a reativa inércia. A memória nos distingue dos autômatos, imóveis, que se reorganizam de acordo com as orientações imputadas pelo exterior. Sem a capacidade de recordar os registros anteriores, se prestam a repetir perpetuamente o presente como a única forma possível de existência.
Estamos cada vez mais isolados e, entretanto, mais similares. Seguimos os mesmos passos na coletiva marcha pelo esquecimento, comemorando cada dia como um a menos.
Sem memória somos recipientes vazios a espera de preenchimento. As agradáveis aparências ocultam os interiores doentes dos fantasmas perdidos frente a tantas contradições.
Em busca de cura, subtraímos o que é concreto. Trocamos as lembranças por registros fotográficos e as experiências reais pelo consumo efêmero, com a expectativa de que a diversão faça com que as horas passem mais rapidamente e a dor pulsante da renúncia se transforme em nada além de um pequeno e suportável incômodo (FROMM, 1983[ii]). O bombardeio midiático nos oferta uma grande variedade de soluções analgésicas, que, apesar de custosas, são completamente ineficazes em suprimir do corpo o estranhamento experienciado.
É fundamental reconhecer que, apesar de todos os esforços feitos em busca de sua racionalização, a vida é uma experiência afetiva indissociável de seu trajeto histórico. É preciso acolher suas contingências e incoerências e assumir sua inflexibilidade. Perante toda a barbárie cometida pela consciência positiva, incapaz de apreender a incomensurabilidade da existência, é preciso exaltar a memória como fator legitimamente humano para evitar que a vida desapareça no fluxo vazio das relações contemporâneas.
Referências:
[i] ADORNO, T; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento. Editora Schwarcz-Companhia das Letras, 1985.
[ii] FROMM, E. Psicanálise da sociedade contemporânea. 10ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1983.
¹Mestre em Administração pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). Professor da Faculdade de Ciências Sociais e Aplicadas do Paraná.
Como citar:
CALDERARI, Egon Bianchini. A Memória como Condição Humana. In: Nuevo Blog, 22 jan. 2021. Disponível em: https://nuevoblog.com/2021/01/22/a-memoria-como-condicao-humana/ . Acesso em: ??
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