
Alexandre Hochmann Béhar¹
Marcos Gilson G. Feitosa²
A crise sanitária e humanitária que vivenciamos pôs em debate o modelo de sociedade em que vivemos. Ganharam destaque críticas ao modo de produção capitalista, tanto no que se refere às causas da pandemia (como a intensa exploração ao meio ambiente), quanto às respostas a ela (como as mobilizações contrárias aos lockdowns, em virtude de seu impacto econômico imediato). A disseminação de um vírus atacou um dos pilares do capitalismo. Em outras palavras, “a máquina não pode parar”.
Estas questões remontam os pilares em que nossa sociedade está fundada. Um modelo de racionalidade que se desenvolve a partir do Iluminismo e se estabelece ao longo do século XIX, pretensamente isento, natural e inevitável, mas orientado por interesses de determinados grupos sociais[i]. A partir de um conjunto de impressões sobre a realidade (ou uma ideologia)[ii], tal modelo é imposto a partir de concepções utilitaristas, mensuráveis e calculáveis. Estas, que inicialmente são dedicadas aos processos produtivos, se expandem aos mais diferentes campos da vida social[iii]. Mas, o que a Administração pode ter a ver com isso?
Tal modelo de sociedade é também denominada de Sociedade Organizacional[iv], tamanha a importância destas em sua dinâmica. Assim, não parece indevido considerar também que esta é uma sociedade de administradores.
Como criação humana, a Administração não se apresentaria desprovida da influência de interesses e disputas de poder. A estas questões se relacionam, inclusive, críticas como a necessidade de melhor consistência nas elaborações conceituais que incorpora[v], o caráter anacrônico do campo[vi], ação ideológica manipulatória nas teorizações[vii], entre outras.
Críticas também são destinadas à prática administrativa. Busca desmedida por lucros e por controle de mercados ocasionariam mortíferas consequências ambientais e sociais[viii], imposição de demandas organizacionais a governos, em detrimento de questões sociais[ix], ocorrência de práticas ilegais e criminosas[x], além da precarização das relações de trabalho[xi].
A necessidade de reforço ao pensamento crítico e reflexivo na Administração, portanto, nos parece urgente. A este respeito, a análise discursiva e a incorporação da perspectiva história podem ser importantes ferramentas para a necessária transformação.
Aspecto fundamental para a construção e transmissão de conhecimento nas sociedades humanas, a linguagem se apresentam para além de uma forma de comunicação. Ela se coloca como meio para descrição de concepções sobre a realidade, possibilitando criação de sentido sobre o mundo, em diferentes contextos e envolvida na disputa por poder[xii]. Às elaborações de sentido do real inspiradas, compartilhadas e moldadas socialmente, chamamos ideologias. Caberiam a estas proporcionar tomada ou reforço ao exercício de poder por determinados grupos sociais sobre outros. Desta forma, as representações de mundo orientadas por ideologias e disseminadas por meio discursivo objetivariam também a manipulação “do outro”. Em sentido inverso, a possibilidade de refletir criticamente e de forma contextualizada sobre construções argumentativas e interesses subjacentes a um discurso colaborariam para romper a ação ideológica, oportunizando maior consciência para reflexão e ação transformadora[xiii].
Complementarmente, a incorporação da perspectiva histórica objetivaria um meio para rompimento com o caráter anacrônico, a-histórico e determinístico, ainda presentes no campo, se apresentando como meio para reflexão crítica ao mainstream[xiv].
Partindo da concepção de ressonância do passado sobre o momento presente, tal perspectiva possibilitaria não apenas inferir causas e interesses orientadores de práticas e teorizações perpetuadas, mas também questionar sua aplicabilidade e relevância no momento presente[xv]. Desta forma, estaria acessível a indivíduos e grupos a possibilidade de reflexão e transformação das próprias realidades.
Um exemplo de aplicação destas potencialidades pode ser vinculado ao conceito de competição. Incorporado da Economia, mas sem definição específica na Administração, mesmo considerando sua relevância para o campo[xvi]. Sendo um dos pilares do modelo de sociedade burguesa no século XVIII[xvii], a competição moldou sobremaneira o papel da Administração naquelas que são consideradas as primeiras empresas de negócios modernas: as ferrovias estadunidenses[xviii]. Assim, uma análise baseada em documentos da época nos auxiliou a refletir sobre as diferentes concepções sobre competição organizacional entre atores sociais, com novas concepções sobre intensões e interesses subjacentes aos discursos críticos ou defensivos às práticas competitivas. Foi possível, inclusive, refletir sobre o papel geopolítico das organizações e da competição ao final do século XIX.
Algo, contudo, nos parece inegável. A oportunidade de refletir discursiva e historicamente proporciona oportunidade de acessar um passado que não parece tão diferente dos pensamentos e práticas contemporâneas. E isto pode ser preocupante.
Para conferir o artigo publicado pelos autores, acesse o link:
http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/cadernosebape/article/view/82429/78452Referências:
[i] HOBSBAWM, E. J. A era das revoluções, 1789-1848. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014.
[ii] VAN DIJK, T. A. Ideologia. Letras de Hoje, v. 50, s53-s61, 2015. Suplemento.
[iii] RAMOS, A. A teoria administrativa e a utilização inadequada de conceitos. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, p. 66-76, 1983.
[iv] REED, M.. Teorização Organizacional: Um campo historicamente contestado. In CLEGG, S. R. HARDY, C., & NORD, R. W., Handbook de estudos organizacionais. São Paulo: Atlas, 2010.
[v] Idem item iii.
[vi] MATITZ, Q. R. S.; VIZEU, F. Construção e uso de conceitos em estudos organizacionais: por uma perspectiva social e histórica. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 46, n. 2, p. 577-598, 2012.
[vii] TRAGTENBERG, M. Administração, poder e ideologia. São Paulo: Ed. Unesp, 2005.
[viii] VAUGHAN, D. The dark side of organizations: mistake, misconduct, and disaster. Annual Review Sociology, n.25, pp.271-305, 1999.
[ix] KORTEN, D. C. When the corporations rule the world. Connectticut, California: Kumariam Press, Berrett-Koehler Publisher, 2001.
[x] MEDEIROS, C. R. de O. Inimigos Públicos: crimes corporativos e necrocorporações. Tese de Doutorado. Escola de Administração de Empresas de São Paulo. 2013.
[xi] ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão: o novo proletário de serviços na era digital. 1. Ed. São Paulo: Boitempo, 2018. E-book.
[xii] FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.
[xiii] Idem item ii.
[xiv] VIZEU, F. Potencialidades da análise histórica nos estudos organizacionais brasileiros. Revista de Administração de Empresas, v. 50, n. 1, p. 36-46, 2010.
[xv] COSTA, A. S. M.; BARROS, D. F.; MARTINS, P. E. M. Perspectiva histórica em administração: novos objetos, novos problemas, novas abordagens. Revista de Administração de Empresas, v. 50, n. 3, p. 288-299, 2010.
[xvi] BARNEY, J. B.; HESTERLY, W. Economia das organizações: entendendo a relação entre as organizações e a análise econômica. In: HARDY, C.; CLEGG, S. R.; NORD, W. R. (Org.). Handbook de estudos organizacionais. São Paulo: Atlas, 2009. v. 3, p. 131-179.
[xvii] Idem item i.
[xviii] CHANDLER, A. The visible hand: the managerial revolution in American business. Cambridge, MA/London: The Belknap Press, 1999.
¹Doutor em Administração pelo Programa de Pós-Graduação em Administração pela Universidade Federal de Pernambuco (PROAD-UFPE). Docente no Instituto Federal de Pernambuco (IFPE).
²Doutor em Educação pela Universidade Federal de São Carlos. Professor Adjunto da Universidade Federal de Pernambuco, lotado no Departamento de Ciências Administrativas (DCA) e no Programa de Pós-Graduação em Administração (PROPAD).
Como citar:
BÉHAR, Alexandre Hochmann; FEITOSA, Marcos Gilson G. Discurso e história para repensar e transformar a Administração. In: Nuevo Blog, 27 jan. 2021. Disponível em: https://nuevoblog.com/2021/01/27/discurso-e-historia-para-repensar-e-transformar-a-administracao/. Acesso em: ??
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