Reflexões sobre coisas chatas: como transver trabalho invisível presente nas infraestruturas de informação?

Fonte: Foto de Brett Sayles no Pexels.

Mateus Filipe de Lima Pelanda¹

Manoel Wenceslau Leite de Barros (1916–2014) foi um poeta brasileiro que, em várias de suas poesias, trazia um novo sentido para coisas desapercebidas,  ou vistas como banais, mundanas. Para fazer isso, Manuel brincava com as palavras ao mudar a construção sintática das frases, também criando verbos, descrevendo, personificando e emprestando para as coisas as texturas e a materialidade de bichos, pessoas, ações cotidianas e outros os objetos que o cercavam. Nisso, Barros fazia “[…] um truque pra fabricar brinquedos com palavras”[i], uma maneira de “transver o mundo”[ii]. Ou seja, o fazer poético de Barros estava em uma construção lúdica, na re-interpretação do mundo, no questionamento da função das palavras e na modificação das estruturas textuais, por meio de sua visão de mundo. Por exemplo, no poema XIX, do capítulo “Uma didática da invenção”, presente em “O livro das ignorãças”[iii], Manuel escreve:

“O rio que fazia uma volta atrás de nossa casa era a
 imagem de um vidro mole que fazia uma volta atrás de casa.
 Passou um homem depois e disse:  
 Essa volta que o rio faz por trás de sua casa se chama enseada.
 Não era mais a imagem de uma cobra de vidro que
 fazia uma volta atrás de casa.
 Era uma enseada.
 Acho que o nome empobreceu a imagem.”

Ao caracterizar a margem do rio como “a imagem de um vidro mole que fazia uma volta atrás de casa”, o autor emprestou os atributos de diferentes coisas, personificando e dando vida a algo que existia no quintal de sua casa. Porém, quando outra pessoa define essa coisa, apresentando a palavra “enseada”, a “cobra de vidro”, descrita por Barros, perdeu o sentido lírico e a alma que havia recebido, assim empobrecendo a imagem das texturas construída pelo poeta.

Assim como nos poemas de Manuel de Barros, em nosso dia-a-dia são emprestadas as texturas e a materialidade de diversas outras coisas, para compreendermos o mundo que nos cerca – e.g. ao utilizar um computador pessoal, a pessoa pode se “conectar” à “rede” mundial de computadores; organizar os “arquivos” por “pastas”; fazer “anotações” em programas de “bloco de notas”; encontrar “bugs”; “apertar” o “botão” de “refrescar” do “navegador” de internet, quando alguma “página” “trava”; etc, etc. Entretanto, por ser tão cotidiano esse empréstimo da materialidade e de texturas, de alguma coisa para descrevermos outra coisa, dificilmente percebemos como se articula esse processo de transver o mundo – a relação entre as coisas se tornam invisíveis.

Dentro do campo de estudos da Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS), existem várias contribuições que se baseiam em objetos de investigação, geralmente invisibilizados pelas práticas das ações cotidianas, mas que possuem grande influência na produção tecnocientífica. Entre esses objetos de estudos de CTS, no campo informacional, se destacam as pesquisas que utilizam como base o termo metodológico de Infraestruturas de Informação (Information Infrastructure)[iv].

Corriqueiramente, o termo “infraestrutura” se refere a entidades físicas que dão suporte para outras coisas, como ferrovias, portos, estradas e encanamentos de esgoto. Entretanto, segundo Susan Leigh Star e Geoffrey C. Bowker (1995[v]), as Infraestruturas de Informação, além de darem suporte para outras atividades, fornecendo as ferramentas para gerar e manipular o conhecimento (e.g. palavras, categorias, procedimentos de processamento de informações), elas também “reificam configurações particulares da prática de trabalho, moldando o mundo no qual as ferramentas podem ser usadas”[vi]. Ou seja, as Infraestruturas também transformam o trabalho e as relações humanas em coisas e, por se tornarem objetos, viram meios para realizar alguma ação, assim como as ferrovias, portos, estradas e encanamentos de esgoto.

Tanto os silêncios, as vozes não ouvidas das pessoas que fazem parte de tais infraestruturas, quanto as categorias, são importantes para vincular trabalho e infraestrutura[vii]. Segundo Susan Leigh Star (2002[viii]) uma das maneiras de descobrir esses vínculos, entre o trabalho e a infraestrutura, está no estudo de “coisas chatas” (boring things)[ix]. Como coisas chatas, pode se entender objetos de estudo geralmente desinteressantes, mas que contém diversas informações sobre as dinâmicas organizacionais que permeiam as relações humanas. Entre essas coisas, estão listas de especificações técnicas, caixas pretas, fios e plugues[x].

Por exemplo, em “Rich and lean representations of information for knowledge work[xi], Karen Ruhleder disserta que, na década de 70, a Universidade da Califórnia, em Irvine (UCI), resolveu transcrever o cânone completo de literatura grega em um Banco de dados, intitulado de Tesouros da Língua Grega (Thesaurus Linguae Graecae – TLG). Nesse contexto, diversos estudantes tomavam como garantidas uma série de decisões e significados estabelecidos pelos criadores de tal enciclopédia. Como resultado, os pesquisadores começaram a fazer as mesmas perguntas realizadas anteriormente por seus pares, mas com a única diferença de obterem respostas mais rápidas. Nesse caso descrito, a Infraestrutura de informação facilitou o acesso a textos sobre literatura grega clássica, pois, segundo Ruhleder (1994), o acervo continha artigos e livros raros, ou de difícil acesso. Ao mesmo tempo, pelos pesquisadores acreditarem que o TLG continha toda a literatura necessária para seus trabalhos, comprometeram o resultado de suas pesquisas.

Em outro exemplo, Geoffrey C. Bowker, Susan Leigh Star e Mark Spanser (2001[xii]) investigaram os registros da Classificação das Intervenções de Enfermagem (Nursing Interventions Classification – NIC). Os pesquisadores e a pesquisadora constataram que, por um lado, os registros do NIC contribuem na construção de uma base de conhecimentos científicos e de ensino para a área de enfermagem. Por outro lado, as informações contidas nesses registros também podem ser prejudiciais, pois revelam diversas práticas de trabalho, geralmente não atribuídas aos enfermeiros e às enfermeiras, acarretando em uma obrigatoriedade de realização e fiscalização de tais atividades.

Os estudos sobre coisas chatas podem auxiliar no entendimento de diversos aspectos das Infraestruturas de Informação. Por sua vez, ao tornar essas Infraestruturas visíveis, possibilitam aos pesquisadores revelar diversos traços das dinâmicas organizacionais, como o trabalho invisível que existe por trás da criação e manutenção das tecnologias; a multiplicidade de vozes silenciadas durante a construção das Infraestruturas; e a subalternização e exclusão de pessoas durante esse processo, por meio de diversas modalidades de apagamentos[xiii]. Retomando a maneira que Manuel de Barros transvê o mundo, talvez uma maneira de entendermos as infraestruturas não seja somente por meio de coisas chatas, mas também por construções poéticas. Então, ao invés de coisas chatas, poderíamos ver um amontoado de texturas de vidro que se esconde atrás dos olhos[xiv].

Referências e Notas:

[i] BARROS, Manuel de. Livro sobre nada. 3a edição ed. Rio de Janeiro: Record, 1996, p. 11.

[ii] Idem item i, p. 75.

[iii] BARROS, Manuel de. O livro das ignorãças. [s.l: s.n.], p. 20.

[iv] Aqui seguiremos as definições e caracterizações de Infraestruturas de Informação, com a base de estudos pragmaticos, do Interacionismo Simbólico, realizados por Susan Leigh Star (1954-2010) e colaboradores.

[v] STAR, Susan Leigh; BOWKER, Geoffrey C. Work and infrastructure. Communications of the ACM, v. 38, n. 9, p. 41, 1995.

[vi] Idem item iv.

[vii] STAR, Susan Leigh; BOWKER, Geoffrey C. Enacting silence: Residual categories as a challenge for ethics, information systems, and communication. Ethics and Information Technology, v. 9, n. 4, p. 273–280, 2007.

[viii] STAR, Susan Leigh. Infrastructure and ethnographic practice: Working on the fringes. Scandinavian Journal of Information Systems, v. 14, n. 2, p. 107–122, 2002.

[ix] Idem item vii, p. 108.

[x] Idem item viii.

[xi] RUHLEDER, Karen. Rich and lean representations of information for knowledge work: the role of computing packages in the work of classical scholars. ACM Transactions on Information Systems, v. 12, n. 2, p. 208–230, abr. 1994.

[xii] BOWKER, Geoffrey C.; STAR, Susan Leigh; SPASSER, Mark A. Classifying nursing work. Online Journal of Issues in Nursing, v. 6, n. 2, 2001.

[xiii] Para maior aprofundamento nesses tópicos, em “Power, technology and the phenomenology of conventions: on being allergic to onions” Susan Leigh Star (1991) argumenta sobre como as relações de poder afetam as fronteiras entre o trabalho visível e invisível, assim como na produção tecnocientífica e os acontecimentos cotidianos; no artigo “Layers of Silence, Arenas of Voice: The Ecology of Visible and Invisible Work”, Susan Leigh Star e Anselm Strauss (1999) debatem a qualidade relacional do trabalho, sobre como as pessoas se tornam invisíveis ou não, pelas articulações e práticas de trabalho e como esse processo causa exclusões de classe social, gênero e cor de pele; no texto “Enacting silence: Residual categories as a challenge for ethics, information systems, and communication”, Susan Leigh Star e Geoffrey C. Bowker (2007) apresentam como as categorias residuais (E.g. “Não classificado”; ‘‘nenhum dos anteriores’’; ‘‘outro” e categorias lixo de modo geral) revelam espaços de exclusão dentro das infraestruturas.

STAR, Susan Leigh. Power, technology and the phenomenology of conventions: on being allergic to onions. In: LAW, John. (Ed.). A Sociology of Monsters: Essays on Power, Technology and Domination. Sociological Review Monograph. Lane, London: Routledge, 1991. p. 26–56.

STAR, Susan Leigh; STRAUSS, Anselm. Layers of silence, arenas of voice: The ecology of visible and invisible work. Computer supported cooperative work (CSCW), v. 8, n. 1–2, p. 9– 30, 1999.

[xiv] Agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pelo financiamento de bolsa de estudos no nível de mestrado – código de financiamento 001.

Também agradeço a Bianca C. Orsso por ter me ajudado na revisão do texto e por comentários perspicazes; ao meu orientador, Dr. Luiz Ernesto Merkle, por ter me apresentado a poesia de Manuel de Barros, ter realizado inúmeros comentários a respeito de minha escrita acadêmica e dos diversos debates sobre os textos de Susan Leigh Star; ao Frederick van Amstel por inúmeras conversas sobre infraestruturas; e a Rodrigo F. Gonzatto, pelos batepapos sobre o fazer com as mãos, “usuários” e poesia.

¹Mestrando na linha de Mediações e Culturas do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia e Sociedade, da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (PPGTE-UTFPR).

Como citar:
PELANDA, Mateus Filipe de Lima. Reflexões sobre coisas chatas: como transver trabalho invisível presente nas infraestruturas de informação?. In: Nuevo Blog, 29 jan. 2021. Disponível em: https://nuevoblog.com/2021/01/29/reflexoes-sobre-coisas-chatas-como-transver-trabalho-invisivel-presente-nas-infraestruturas-de-informacao/ . Acesso em: ??

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