O pensamento indígena e o campo de Ciência, Tecnologia e Sociedade: discussões a partir do livro “A vida não é útil” de Ailton Krenak

Fonte: Foto de Vincent Tan no Pexels

Livia Weyl Costa¹

A proposta do texto a seguir é discutir como os conhecimentos indígenas podem se relacionar com as discussões dos estudos em ciência, tecnologia e sociedade, e a validação desses conhecimentos. Levando em consideração o livro “A vida não é útil” do líder indígena Ailton Krenak[i] e o artigo “Relações e dissensões entre saberes tradicionais e saber científico” da antropóloga Manoela Carneiro da Cunha[ii]. “Se uma parte de nós acha que pode colonizar outro planeta, significa que ainda não aprenderam nada com a experiência na Terra. Eu me pergunto quantas terras essa gente precisa consumir até entender que está no caminho errado” diz Ailton Krenak no capítulo “Não se come dinheiro”, onde o autor discute a relação da humanidade com a natureza, entre si e os resultados de existir em uma sociedade capitalista. Krenak destaca compreensões indígenas a respeito da terra enquanto organismo vivo e da relação complementar e inseparável entre seres humanos e natureza.

O autor acrescenta, em “sonhos para adiar o fim do mundo”, visões premonitórias tidas por um pajé xavante, 40 anos atrás: um espírito da caça estaria bravo com ele, pois não estava cuidando bem dos espíritos do bichos e a terra acabaria desolada, o homem branco invadindo o mundo indígena. Krenak diz, nesse momento, ter atentado para algo na perspectiva dos povos indígenas, em seu jeito de “pensar e sentir” que poderia “abrir uma fresta de entendimento nesse entorno que é o mundo do conhecimento”, ao passo que com o passar das décadas, foi observando o agronegócio invadir as terras indígenas, a necessidade de sempre produzir mais gerando danos irreparáveis à natureza, à população e terras indígenas.

Em outro contexto, os estudos envolvendo Ciência, Tecnologia e Sociedade surgem no final da década de 60 nos Estados Unidos e na Europa, como resultado de um questionamento crescente a respeito dos efeitos do desenvolvimento tecnológico e científico na sociedade. Efeitos problemáticos como guerras, vazamentos radioativos e interações medicamentosas negativas levaram ao questionamento da visão essencialista da ciência, que acreditava em um desenvolvimento linear – quanto maior o investimento em ciência e tecnologia maior seria o bem estar social – , e na crença de que a produção científica e tecnológica se daria de forma neutra, ignorando a presença de intenções de cientistas, governos e instituições privadas[iii].

Varsavsky[iv] acrescenta, discutindo como a produção científica, dependendo da arrecadação de recursos financeiros, teria passado a existir dentro da lógica da sociedade de consumo, pesquisas em grande quantidade e frequência, perdendo profundidade e possibilidades de ideias diferentes, pois não é seguro ou interessante investir financeiramente em uma ideia incerta .

Nota-se duas formas de produção de conhecimento, geradas em locais diferentes, chegando a conclusões semelhantes a respeito da relação da humanidade com a natureza, a produção científica e tecnológica e os efeitos gerados para a sociedade. A compreensão da necessidade de repensar práticas para que a coexistência seja possível.

Entretanto, e apesar de alguns pensadores indígenas como Ailton Krenak estarem sendo incorporados pelos mecanismos de produção de conhecimento científico, ressalta-se como dito por Cunha[v], que o pensamento científico ocidental é hegemônico na sociedade contemporânea e acaba, a partir de um juízo de valor, considerando-se melhor do que o que denomina por “saberes tradicionais” advindo dos povos originários.

A autora comenta casos onde o segundo é absorvido pela ciência, sem o devido reconhecimento às comunidades de onde foi inicialmente encontrado, cita como exemplo, práticas sustentáveis de seringueiros do Alto Juruá. Diz também, como a relação entre os tipos de conhecimento por vezes se encerra em uma simples “validação de saberes tradicionais pela ciência contemporânea” ao invés de se estabelecer um reconhecimento de que “os paradigmas e práticas de ciências tradicionais são fontes potenciais de inovação da nossa ciência”.

Em “sonhos para adiar o fim do mundo” Ailton Krenak conta uma história antiga do povo Krenak[vi], onde, ao ser perguntado sobre o que achou da humanidade após criá-la, Deus responde: Mais ou menos. Para os Krenak a criatura humana pode dar errado, constatação interessante para repensar os que acreditam na certeza do sucesso tecnológico e científico do ser humano sobre a natureza, assim como questionado por cientistas que discutem o campo CTS.

Cunha[vii] diz que estamos mal acostumados, tratando povos tradicionais como “nossos indígenas”, “nossos ribeirinhos”, como se fossem patrimônio interno comum aos brasileiros, generalizando, coisificando, apagando, desperdiçando uma grande oportunidade de estabelecer um ambiente de colaboração e respeito com as populações tradicionais.

Referências:

[i] KRENAK, Ailton. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

[ii] CUNHA, M. C. Relações e dissensões entre saberes tradicionais e saber científico. Revista USP, n.75, 2007.

[iii] VON LISIGEN, Irlan et al. Introdução aos Estudos CTS . Brasil: Organização de Estudos Ibero Americanos Para a Educação a Ciência e a Cultura, 2003.

[iv] VARSAVSKY, Oscar. Ciencia, Política y Cientificismo. Centro Editor de América Latina,1969

[v] Idem item ii.

[vi] Idem item i.

[vii] Idem item ii.

¹Mestranda em Tecnologia e Sociedade pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná (PPGTE-UTFPR).

Como citar:
COSTA, Lívia Weyl. O pensamento indígena e o campo de Ciência, Tecnologia e Sociedade: discussões a partir do livro “A vida não é útil” de Ailton Krenak . In: Nuevo Blog, 10 fev. 2021. Disponível em: https://nuevoblog.com/2021/02/05/o-pensamento-indigena-e-o-campo-de-ciencia-tecnologia-e-sociedade-discussoes-a-partir-do-livro-a-vida-nao-e-util-de-ailton-krenak/. Acesso em: ??

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