O cotidiano urbano através da análise de imagens fotográficas

Fonte: Foto de Saeid Anvar no Pexels

Ana Elyze Santos Martins de Gois¹

A diversificação das fontes de pesquisa para dentro dos estudos culturais foi intensificada no século XX com a criação de novas práticas culturais, bem como novos olhares para estes materiais, novas problemáticas e possibilidades. A fotografia embora surja no século XIX e tenha se popularizado no século XX nos centros urbanos, teve sua aceitação e utilização enquanto fonte de pesquisa mais recentemente. As imagens permeiam a forma como acessamos determinados extratos das sociedades, pensamentos, práticas e costumes de um período, ou seja, as imagens se mostram profícuas enquanto fontes de pesquisa sobre o social, seja a partir do presente, seja do passado. Entretanto, vale o alerta e ressalva de que as imagens, assim como todos os documentos-fontes, não são livres de influências e intenções, negociações ou recortes, não sendo possível assumir que uma imagem vale por si só, havendo assim a necessidade de questionar seu contexto de produção e procurar nas imagens suas contradições internas e externas[i].

Dessa forma, de forma breve, pretende-se neste texto refletir sobre a utilização de imagens fotográficas no estudo do cotidiano urbano, a partir de três imagens da fotógrafa Alice Brill, que retratam a sociedade paulista dentro do contexto de industrialização e urbanização da cidade de São Paulo na década de 1950. Aliado a reflexão através das imagens propostas, articula-se a defesa da utilização de imagens enquanto fontes de pesquisa com o estudo da cultura, a partir da abordagem de totalidade de Raymond Williams em relação a cultura e a sociedade.

Ao propor uma nova abordagem para as categorias de base e superestrutura do marxismo, Raymond Williams defende que a cultura é por si só também uma forma ao campo da superestrutura como não determinante na vida dos indivíduos. Williams compreende então que a cultura, assim como as demais áreas que compreendem a vivência social fazem parte de uma totalidade que engloba as práticas sociais, colocando-as em relação através de uma complexa rede. Dessa forma, para Williams, a cultura é constituída e constituinte da cultura[ii], sendo uma força produtiva, tal qual as demais forças produtivas do mundo material como um todo.

A perspectiva de José de Souza Martins em relação ao uso e produção de imagens, em uma abordagem sociológica, entende-as como produções culturais, que resultam de negociações e tensões, tanto entre fotografo e fotografado, como produto material, a fotografia impressa, e o seu contexto. Nessa perspectiva Martins coloca a imagem como símbolo indiciário do irreal, manifesto no imaginário que ronda a produção imagética. Utiliza-se da elaboração de Marx a respeito da audição e do ouvido para propor que o filósofo-sociólogo alemão “[…] poderia ter dito que a imagem, em cada época, educa a visão e os olhos. Portanto, que a imagem produzida pelo homem, segundo diferentes concepções e estilos, diz ao homem, em cada época, que o homem é”[iii], ou seja, tal qual Marx propôs a audição, Martins propõe que a visão é uma construção social, sendo a imagem a materialização desse imaginário social. Tendo tais noções em mente, se propõe que as fotografias sejam pensadas a partir de suas totalidades sociológicas, compreendendo-as como produtos materiais da força produtiva de uma cultura em determinado contexto.

A partir disso, pensam-se as fotografias de Alice Brill. A fotógrafa judia de origem alemã, naturalizou-se brasileira após ter imigrado para o Brasil em decorrências das perseguições empreendidas aos judeus partir dos anos 1930. Brill incialmente se dedicou a pintura e posteriormente passou a atuar como fotógrafa documental atuando principalmente na cidade de São Paulo entre as décadas de 1950 e 1960, tendo trabalhado no registro dos movimentos de urbanização e industrialização da cidade, bem como o cotidiano da mesma[iv].

Nas imagens abaixo podemos destacar dois eixos temáticos de formação do imaginário cultural sobre a cidade de São Paulo e sobre o cotidiano na/da cidade. Um primeiro pode ser observado nas figuras 1 e 2, que é o imaginário do cotidiano urbano marcado pela vida pública que é perpassada pelo trabalho formal, pela industrialização, pela vivência da metrópole, seja no contraste das longas filas horizontais de espera por um bonde com o crescimento vertical da cidade representado pelos prédios (figura 1); seja pela prática do cafezinho no meio da cidade como ponto de encontro e sociabilidade no meio do dia, mas no qual, aparentemente, não se gasta muito tempo (figura 2). Ambas as imagens corroboram com a imagem de uma cidade que é feita por muitas pessoas, portanto por muitas vivências convergentes, tal imaginário é construído através do registro das práticas sociais do cotidiano, ou seja, do imaginário sobre quem é o homem e a mulher que estão inseridos no processo de urbanização deste espaço social.

Figura 1- Alice Brill, Filas em pontos de ônibus no vale do Anhangabaú, negativo flexível preto e branco, 6 x 6 cm, 1953.

Fonte: Instituto Moreira Salles.

Figura 2 – Alice Brill, Cafezinho, negativo flexível preto e branco, 6 x 6 cm, 1954.

Fonte: Instituto Moreira Salles.

Já a figura 3 apresenta um segundo eixo temático, uma nova forma de cotidiano dentro da cidade em processo de industrialização, que é a vivência do tradicional, existindo neste lugar uma temporalidade e práticas distintas as do primeiro eixo. Ao retratar o cotidiano em um espaço não central da cidade, podemos observar um cotidiano que se coloca em oposição ao apresentado no primeiro eixo. Neste cotidiano há uma nova forma de relação com o tempo e com os sujeitos envolvidos, há tempo para a conversa e para a negociação em relação aos produtos vendidos, bem como para a vivência em grupo. O imaginário produzido aqui é de comunidade, nas quais as práticas são codependentes em suas produções e manutenções.

Figura 3 – Alice Brill, Vendedor de balões em feira livre, negativo flexível preto e branco, 6 x 6 cm, 1953.

Fonte: Instituto Moreira Salles.

Como propôs Raymond Williams a cultura é fundante da realidade social, bem como das práticas sociais, dessa forma compreender a fotografia enquanto produtora de uma cultura visual, ou seja, uma forma de ver e pensar imagens fotográficas, corrobora com a criação de práticas sociais que partem do imaginário social a qual pertencem. Assim, deve-se pensar, como defendeu Williams, a totalidade da sociedade em relação a produção material da mesma, haja visto que não há como dissociar o produto e as práticas por ele proporcionadas.

Referências:

[i] MARTINS, José de Souza. Sociologia da Fotografia e da Imagem. São Paulo: Contexto, 2017, p. 11.

[ii] CEVASCO, Maria Elisa. Materialismo Cultural. In: CEVASCO, Maria Elisa. Para ler Raymond Williams. São Paulo: Paz e Terra, 2001, p. 146.

[iii] Idem item i, p. 20.

[iv] DINES, Yara Schreiber. São Paulo na imagética de Hildegard Rosenthal e de Alice Brill, fotógrafas imigrantes modernas. PROA – Revista de Antropologia e Arte, Campinas, n.7, v.1, p. 88-128, Jan./Jun. 2017, p. 93-95.

¹Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia e Sociedade da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (PPGTE-UTFPR).

Como citar:
GOIS, Ana Elyze Santos Martins de. O cotidiano urbano através da análise de imagens fotográficas . In: Nuevo Blog, 12 fev. 2021. Disponível em: https://nuevoblog.com/2021/02/12/o-cotidiano-urbano-atraves-da-analise-de-imagens-fotograficas/. Acesso em: ??

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