Sexualidade e Normalidade nas Organizações: “mas isso é ‘normal’, agora”?

Vinícius Galante¹

Temos assistido a um movimento acelerado de Diversidade & Inclusão (D&I) nas empresas no Brasil nos últimos anos. Grupos minoritários, ou melhor, politicamente minorizados, são a quem se destina políticas e práticas de D&I, que buscam, de maneira geral, promover a inclusão de mulheres, negros, pessoas com deficiência, lésbicas, gays, bissexuais, transexuais[i] e queers[ii] (LGBTQ), entre outros grupos historicamente marginalizados, nas empresas e nos altos níveis da hierarquia organizacional. Em 2020, a veiculação de uma peça publicitária de Dia dos Pais por uma grande empresa do segmento de beleza e cosméticos, na qual um homem transexual vivenciava a paternidade (ou parentalidade), repercutiu em diversos campos da sociedade e provocou reações em série, de apoio e crítica, apaixonadas e contundentes, à campanha da empresa.

É difícil imaginar essa campanha sendo exibida pela mídia hegemônica a alguns anos. Assim, vale uma reflexão sobre como esse “tema” chegou até ela. Transformações na cultura produzem novas sexualidades, reguladas por discursos que se atualizam constantemente sobre os corpos e o desejo[iii]. Os sujeitos que povoam os enredos transmitidos pela mídia hegemônica, desse modo, são retrato de uma sociedade da qual ela é produto e produtora. As organizações, por sua vez, vão sendo preenchidas por sujeitos que trazem em seus corpos e subjetividades “novas” perfomances de gênero[iv], movimento que se observa, em particular, pela entrada de gerações mais jovens no mercado de trabalho. E se transformações na sociedade e cultura produziram “novos” sujeitos organizacionais, também é certo que as políticas de D&I, ao proporem o tratamento ético e iguais condições de carreira e trabalho a LGBTQ, impulsionaram a presença de quem é diferente nesses espaços.

Otimistas com as possibilidades para o negócio que a mistura entre normais e diferentes poderia entregar, convencidas por argumentos que vão desde justiça social até ganhos gerenciais, como mais inovação e criatividade[v], as organizações passaram a se perguntar o que poderiam fazer para incluir os diferentes. Em que pese a importância dos movimentos de D&I, ao permitirem novos percursos de vida para LGBTQ, como o emprego fixo, a carreira na grande empresa[vi], a renda comprovada parar financiar um imóvel, inclusive, apresentando ao/a gerente do banco o holerite do parceiro(a) homoafetivo(a) para aumentar a capacidade de crédito, e o plano de saúde extensível a(o) cônjuge, tais movimentos parecem nunca ter se perguntado porque se tornaram necessários. Em outras palavras: em que momento quem decidiu quem era normal em função do seu desejo? Em que momento a sociedade estabeleceu que a heterossexualidade é a forma “normal”, “natural” e compulsória de sexualidade humana[vii]?

Mesmo sem aparentemente se fazer essas perguntas, que seriam tão elucidativas dos desafios e caminhos para a inclusão de LGBTQ nas organizações, algumas empresas, encantadas com os discursos de D&I, passaram a falar em seus treinamentos para a liderança em salas de conferências de hotel, em eventos regados a fartos coffee-breaks, que lésbicas, gays e transexuais[1] eram bem-vindos nas equipes, pois “a diversidade é boa para o negócio”. Para quem vivencia “a comunidade LGBTQ”, como eu, é possível notar uma cisão: alguns, se orgulham de trabalhar numa empresa “inclusiva”; outros, não sabem do que se trata “essa conversa de D&I” ou que é “só por causa do pink money”. O que me leva a algumas reflexões: quem são os gays que “agora podem” estar nas organizações? E o que é “o gay”? E as lésbicas, que “agora pode” também? Quem é “a lésbica”?

Acredito que para quem pensou tais políticas há um jeito de ser lésbica e há um jeito de ser gay também, visto que se sentem seguros em convocar identidades bem-acabadas, como “o gay” e “a lésbica”, para pautar as discussões, ainda mais para uma audiência que, acredito eu, tenha poucas referências de convívio com “o gay” e “a lésbica”.  Assim, sujeitos que gozam dos privilégios da normalidade, mais especificamente, da cis heterossexualidade, têm estruturado programas de D&I, satisfeitos com o altruísmo de suas ações que, de quebra, prometem fazer crescer o número que aparece na bottom line do Demonstrativo de Resultados. Como resultado, tenho observado que tais políticas têm produzido a normalização de algumas novas identidades e corpos, alargando (só um pouco) o espectro da normalidade, ao mover um bocadinho mais para “fora” a fronteira entre o normal/anormal, entre o inteligível/ininteligível[viii]. A D&I corporativa, propagandeada por consultores e experts no tema, parece se esquecer de questionar a própria necessidade da sua existência, calcada no sentido de normalidade, uma ficção a qual somos forçados a acreditar e professar.

A maior parte dos LGBTQ segue sem carimbo no passaporte para atravessar a fronteira para a normalidade e estar dentro das organizações. Isso é ainda mais notório em se falando das pessoas trans. Isso porque não podemos pensar as categorias sociais isoladamente; as hierarquias sociais são instituídas por um conjunto de marcadores identitários: gênero, raça, classe socioeconômica, nacionalidade e origem, entre outros. Desse modo, a normalização de LGBTQ nos ambientes organizacionais estimulada pelo movimento de D&I tem se restringido a lésbicas e gays brancos das classes média e alta, cujos corpos carregam marcadores sociais e capital cultural que lhes proporcionam os códigos necessários para transitar em ambientes de elite e de privilégio, como as organizações, além de performarem satisfatoriamente uma certa feminilidade e masculinidade, o suficiente para atender aos critérios de suas expressões contemporâneas[ix].

Sendo assim, proponho uma reflexão aos pesquisadores em organizações: O que é ser normal? E o que é ser normal com relação a sua sexualidade, seu desejo, suas pulsões? E considerando a hipótese, muito provável em se tratando de pessoas, da impossibilidade de traçarmos os limites entre normal/diferente, como podemos pensar a D&I? Quais as chances de “sucesso” do movimento de D&I em curso, com base nos objetivos a que se propõe, de inclusão de pessoas historicamente subalternizadas, se esse se alicerça justamente nós próprios critérios que são a origem das exclusões? Qual a capacidade de designar das identidades – “o gay” e “a lésbica”, a ponto de acreditarem que esses signos são capazes de  descrever experiências homogeneizadas de um grupo tão diverso de sujeitos e sujeitas[x]?

E para apoiar essa reflexão trago aqui algumas provocações propostas por teóricos Queer. De início, gostaria de apontar que “a” Teoria Queer é de difícil definição e que não há limites claros entre o que é e o que não é Teoria Queer[xi]. Podemos dizer que teoria queer sugere que todo conhecimento sobre a “realidade” social está sujeito a reflexão crítica[xii]. Nesse sentido, o pensamento queer pode ser entendido como uma atitude crítica a tudo o que é considerado normal, natural ou legítimo, e não deve ser entendido como uma teoria acabada ou construto definitivo, mas como um exercício, uma prática, um verbo, uma analítica, ou um processo de questionamento permanente[xiii]. De maneira que os teóricos queer têm se preocupado com os pressupostos que instituem a diferença, particularmente, buscando revelar regimes de poder que estão ocultos (e plenamente operantes) pelas categorias binárias nas quais fomos aculturados para significar o mundo[xiv].

Pensar a D&I inclusão sob binarismos de gênero e sexualidade e, principalmente, sob a chave normal/diferente, a meu ver, implica em prosseguir com um movimento que é necessariamente violento e excludente com muitos de nós LGBTQ, visto que para normalizar alguns, se ressalta marcadores da diferença, ao invés de se questionar esses marcadores. Como resultado, alguns (muitos) ficam de “fora”, porque mesmo que se tenha alargado a regra da normalidade o que, sem dúvida, é um movimento interessante e positivo, essa fronteira da normalidade continua a existir e sempre terá abrangência restrita. Não é preciso normalizar LGBTQ para que as organizações sejam mais “inclusivas” para nós, mas levar à compreensão de como sexualidade humana é complexa, instável, contínua, e pode se manifestar em diversas performances e corpos. 

Tendo levantando as questões que gostaria e oferecido um caminho para a reflexão, por fim, gostaria de enfatizar a importância de tornar a D&I organizacional mais queer, mais esquisita, mais anormal, sem fronteiras. E problematizo por que instituímos que o desejo e nossas práticas sexuais – ou sexualidade, seriam um marcador social, implacável em definir quais vidas podem ou não existir e serem vividas? É possível abandonar essa distinção, que nos torna inteligível ou não[xv]? Essa abordagem, sim, acredito teria força para desestabilizar a cis heteronormatividade que permeia as organizações, e que é justamente o fator que torna a D&I necessária. O debate sobre D&I tem a ganhar com o estranhamento de tais identidades e com o questionamento dessas estruturas binomiais homem/mulher e homo/hetero etc. Não vejo sentido em permanecer a abordar a “questão” de como “integrar” os LGBTQ nas organizações, como se tem feito, esperando como resultado que as organizações se tornem mais diversas. E sim justamente se perguntar o que causou a exclusão e no que essa se sustenta. Tornar a D&I mais queer permitiria adicionar outras perspectivas para problematizar como as organizações podem ser mais “inclusivas”, o que passará por confrontar as relações de poder que produziram a hierarquização e a discriminação forjadas na sexualidade. Nesse percurso, ouvir LGBTQ e pesquisadores LGBTQ pode contribuir para gerar conhecimento contra hegemônico, que opere para a redução do estranhamento com os diferentes e construção de caminhos para a “inclusão”.

Referências e Notas:


[i] Caberia maior cuidado e explicação sobre o uso do termo transexual e/ou transgênero, tema complexo que requer aprofundamento que escapa ao objetivo deste texto.

[ii] De maneira simples, o termo queer, historicamente utilizado como insulto para designar homens gays, especialmente nos EUA, tem sido ressignificado pela comunidade LGBTQ e serve como um termo “guarda-chuva”, com o intuito de abarcar expressões de gênero e sexualidade não cis heterossexuais.

[iii] FOUCAULT, M. Michel Foucault, the history of sexuality: An introduction, 1978. In: English Studies in Canada, v.1, 1978. https://doi.org/10.1353/esc.2015.0079

[iv] BUTLER, J. P. Gender Trouble: Feminism and the Subversion of identity (10th anniv; L. J. Nicholson, ed.). New York: Routledge, 1999.

[v] COLGAN, F. Equality, diversity and corporate responsibility: Sexual orientation and diversity management in the UK private sector. Equality, Diversity and Inclusion, v. 30, n.8, 2011. https://doi.org/10.1108/02610151111183225

[vi] Aqui cito somente gays, lésbicas e transexuais intencionalmente, pois a inclusão de bissexuais e queers em tais discursos de D&I demandaria uma compreensão da sexualidade humana que está fora do binômio homo/hetero que dá lastro a tais discursos.

[vii] FOUCAULT, M. Michel Foucault, the history of sexuality: An introduction, 1978. In: English Studies in Canada, v.1, 1978. https://doi.org/10.1353/esc.2015.0079

BUTLER, J. P. Gender Trouble: Feminism and the Subversion of identity (10th anniv; L. J. Nicholson, ed.). New York: Routledge, 1999.

[viii] Idem item iv.

[ix] COLES, T. Negotiating the Field of Masculinity. Men and Masculinities, v.12, n.1, 2009. https://doi.org/10.1177/1097184×07309502

RUMENS, N.  Postfeminism, Men, Masculinities and Work: A Research Agenda for Gender and Organization Studies Scholars. Gender, Work and Organization, v. 24, n.3, 2017a.  https://doi.org/10.1111/gwao.12138

[x] BUTLER, J. P. Fundamentos contingentes: feminismo e a questão do “pós-modernismo.” Cadernos Pagu, v.11, n.1, 1998.

[xi] MCDONALD, J. Occupational Segregation Research: Queering the Conversation. Gender, Work and Organization, v.23,n.1, 2016b. https://doi.org/10.1111/gwao.12100

[xii] MCDONALD, J. Expanding queer reflexivity: The closet as a guiding metaphor for reflexive practice. Management Learning, v.47, n.4, 2016a. https://doi.org/10.1177/1350507615610029

[xiii] RUMENS, N. Towards Queering the Business School: A Research Agenda for Advancing Lesbian, Gay, Bisexual and Trans Perspectives and Issues. Gender, Work and Organization, v.23, n.1, 2016. https://doi.org/10.1111/gwao.12077

RUMENS, N. Queering lesbian, gay, bisexual and transgender identities in human resource development and management education contexts. Management Learning, v.48,n.2, 2017b.

[xiv] Idem item xi.

[xv] Idem item iv.

¹Doutorando em Administração de Empresas também pela Fundação Getúlio Vargas (FGV | EAESP).

Como citar:

GALANTE, Vinícius. Sexualidade e Normalidade nas Organizações: “mas isso é ‘normal’, agora”? In: Nuevo Blog, 21 jun. 2021. Disponível em: https://nuevoblog.com/2021/06/21/sexualidade-e-normalidade-nas-organizacoes-mas-isso-e-normal-agora/. Acesso em: ??

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