A Montanha Mágica de Thomas Mann


Carlos Debiasi1


Um livro pode conter muitas vidas em sua existência; outros podem mudar a existência em uma única noite de leitura amalucada. São igualmente raros e devem ser respeitados porque nos tocam como arte, são peças inestimáveis para o bem viver.

Livros também podem atravessar o seu caminho em momentos específicos. Sou desses que gosta do chamado à leitura; as capas sussurram, chamam ou até gritam para serem lidas em um passeio pelas estantes da minha casa ou nos sebos e bibliotecas.

De todos que já passei os olhos como leitor, nenhum assistiu tantas mudanças de mim como a Montanha Mágica, de Thomas Mann.

Uma obra que apareceu em momentos distintos da minha vida. Tomei conhecimento da sua existência em uma livraria ainda moço – em torno de uns 15 anos – e me assombrei com o tamanho colossal da lombada, fiquei fascinado com a capa autoexplicativa na qual se via uma enorme montanha em pintura realista. Espiei dentro e, para meu espanto, aquilo era uma história de ficção. Quem diria. Não comprei aquela edição; mas até hoje é esse livro, com essa capa, que mentalizo quando penso na obra.

A segunda vez que Mann cruzou minha frente foi na Ilha do Mel. Ali estava eu jovem de tudo ainda dando uma oficina de roteiro para um projeto social. Em conversa com um dos coordenadores do projeto, descobrimos nosso carinho pela literatura. Certo dia fomos passear pela ilha e, em determinado momento, trocamos impressões sobre quais eram os livros mais importantes para cada um de nós, qual era a obra que havia feito ver o mundo de jeito diferente. Não lembro da minha resposta, mas para ele não havia dúvida: era a Montanha Mágica. Como bom estudante, sublinhei mais uma vez o título de Mann em minha mente.

Só fui realmente começar a subir a montanha lá por 2013. Estava em Brasília e o mundo ainda parecia bem menos complicado do que é hoje; creio que vocês todos sabem como é. Tinha que esperar dois dias na cidade por um compromisso. Passei na livraria Saraiva de um shopping e lá estava a Montanha, em uma das gôndolas de livros de bolso. Estranhíssimo o ímpeto da editora de diagramar o calhamaço de mais de mil páginas em um livro de pequeno formato, no qual os dedos se cansam ao longo da leitura para mantê-lo aberto. De qualquer forma, essa foi a edição desajeitada que me chamou e por ela acabei tendo um afeto inesperado com o passar dos anos. Hoje gosto muito dos sulcos que foram se formando ao longo da lombada, das marcas de dente do gato que tentou ver se Mann era de fato palatável e se decepcionou, de uma ou outra anotação que deixei dentro para impressões futuras.

Sobre a obra, já de cara, talvez como Dante em seu Inferno que apregoa uma placa na entrada para alertar o que vem adiante, Mann nos avisa que: “Não será, portanto, num abrir e fechar de olhos que o narrador terminará a história de Hans Castrop. Não lhe bastarão para isso os sete dias de uma semana, nem tampouco sete meses. Melhor será que ele desista de computar o tempo que decorrerá sobre a Terra, enquanto essa tarefa o mantiver enredado. Decerto não chegará – Deus me livre – a sete anos”. Esse parágrafo pairou durante anos na minha cabeça; de tanto repeti-lo, troquei narrador por leitor. Achei irônico quando chegou 2020 e, Deus me livre, ainda não havia acabado a leitura.

Aqui talvez entre a chave misteriosa da obra. Porque fui descobrindo que o tempo de leitura não era importante; ao que parecia, não importava o quanto a adiasse. Cheguei a ficar longe do livro por mais de um ano certa vez. Mas quando voltava tudo continuava envolto nas nuvens do Sanatório Berghof, palco principal da trama do jovem Hans Castrop que sobe os alpes suíços para visitar o primo Joachim que sofre de uma doença respiratória, descobre em si uma suposta doença semelhante e passa anos por lá pensando na vida.

Ao longo do livro se discute a respeito de tudo – inclusive o nada. Incrível o ímpeto do autor em desenvolver tratados a respeito de tantas questões que pairavam no início do século XX. Os dogmas da religião, o Iluminismo, o movimento carbonário, o espírito da cerveja e do vinho, o uso de termômetros de mercúrio, a trajetória da quinina no mundo ocidental. Há uma passagem tocante sobre o cinema e o caráter fantasmagórico e assustador das imagens; o disco e a vitrola como entidades que nos aproximam do divino. Tudo é tocado pela sombra da grande montanha de Mann mas, tal qual um turista qualquer que em um acesso de coragem – e talvez loucura – tivesse pulmões para bradar por respostas, não obteria nada além do silêncio do vento. Personagens, acontecimentos, sensações, um amor, procedimentos científicos passam defronte a Hans. Se esvaem às vezes após muitas páginas de discussão. Não são poucas as questões debatidas no livro que respiram os ares rarefeitos das altitudes e se perdem em meio às montanhas. Talvez justamente esse caráter etéreo da obra seja a sua força em trazer de volta os leitores desgarrados. Parece que ninguém na história vai se importar se ficar um tempo longe e retornar depois; afinal de contas, o tempo é absolutamente relativo por aqui.

Acho que esse é um relato também da minha teimosia em não deixar um livro ir embora sem chegar ao fim da obra. Melhor assim. Quando finalmente cheguei ao topo da Montanha Mágica dia desses de madrugada acho que envelheci um tantinho. O ano era 2022 e nove anos haviam se passado desde que iniciei a primeira página sentado em um enigmático parque modernista da capital do Brasil. Nesse meio tempo virei professor, pai e tantos outros Carlos nasceram e morreram em mim.

A arte e seus processos invisíveis.

1Professor na empresa PUCPR.

Como citar

Debiasi, Carlos. A Montanha Mágica de Thomas Mann. In: Nuevo Blog, 12 ago. 2022. Disponível em: https://nuevoblog.com/2022/08/12/a-montanha-magica-de-thomas-mann/. Acesso em: ??

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